Decisões conflitantes transmitem sinais ambíguos
O tema da reforma política é dos mais recorrentes no debate público brasileiro pós-redemocratização. Empaca, contudo, por uma razão singela: o instinto de sobrevivência frente ao desconhecido. Nenhuma reforma de regras político-eleitorais é neutra; sempre há ganhadores e perdedores. O ponto central é que a mudança de instituições não é uma ciência exata - como se poderia depreender da otimista expressão "engenharia institucional". A incerteza é parte inerente da implantação de novas regras: tanto os especialistas como os atores políticos diretamente envolvidos (principalmente deputados federais, senadores, e a Presidência de turno) podem apenas especular sobre os significados gerais de determinada alteração, sendo quase impossível cravar quais seriam suas consequências exatas. Os políticos, atores investidos da prerrogativa da reforma, já aprenderam a jogar sob as atuais regras e seriam os mais afetados por qualquer alteração; além disso, possuem leituras divergentes sobre suas eventuais consequências. Daí a dificuldade de se passar de uma agenda negativa quase consensual, em que se identificam os pontos frágeis do sistema, para um programa positivo de novas regras, capaz de agregar uma maioria sólida em torno da aprovação.
A sobrevivência política fala mais alto, e a inércia substitui o que para muitos seria um salto no escuro. Assim, em vez de atacarem algumas poucas questões pontuais que, a meu ver, já trariam avanços consideráveis - como financiamento de campanhas, coligações nas eleições proporcionais, e a infidelidade partidária -, os políticos optam pela proposição de grandes projetos de reforma, com chances quase nulas de aprovação, e recorrem à estratégia que é preferência nacional quando se deseja protelar ou não aprovar algo: a formação de comissões.
É nesse contexto que se situa o ativismo do Supremo Tribunal Federal nos últimos anos. Cabe ressaltar que o STF só age quando provocado, ou seja: baixa normas em resposta a questionamentos de outros atores (partidos, bancadas etc.) acerca de ambiguidades, omissões e problemas (sobretudo de constitucionalidade) das atuais ou de novas regras. Frente à inércia dos legisladores nessa seara, a multiplicação dos questionamentos tem levado a uma atuação mais frequente do STF, e algumas de suas decisões pontuais têm produzido efeitos de amplo espectro e de larga duração sobre o sistema político.
Em 2007 os ministros da Corte julgaram inconstitucional a cláusula de barreira, que determinava que apenas os partidos que atingissem 5% dos votos para a Câmara teriam acesso a funcionamento parlamentar e à participação na divisão de 99% do fundo partidário (e da grande maioria do tempo de televisão). Ao tornar letra morta dispositivo previsto desde 1995, o STF alterou o jogo em prejuízo dos partidos mais representativos, não só pela extinção da cláusula, mas também porque o vácuo gerado quanto às normas de distribuição dos recursos seria preenchido na sequência por critérios bem mais generosos com os partidos nanicos e/ou de aluguel, que passaram a abocanhar fatias mais significativas de recursos públicos. Decisões tomadas nos últimos dois anos foram no mesmo sentido, favorecendo a multiplicação dos partidos nos país. Numa flagrante aberração frente ao espírito da legislação em vigor - que preconiza a divisão dos recursos estatais segundo critérios de representatividade eleitoral, conforme auferida na última votação para a Câmara -, em 2012 o STF garantiu ao PSD fatias proporcionais à sua bancada (constituída por deputados eleitos por outras siglas), ignorando o fato de que o partido não recebera nenhum voto em 2010. Essa decisão, que abriu as porteiras para novas movimentações na classe política, contrariou entendimento prévio do próprio STF, que deliberou em 2007 pelo caráter partidário, e não individual, do mandato parlamentar.
Em julgamento interrompido em dezembro último, o STF caminha para proibir as doações eleitorais de empresas, o que teria consequências profundas e apenas parcialmente conhecidas sobre o sistema político. Sem entrar no mérito da questão, o fato é que o financiamento privado constitui a parte mais substantiva das receitas de campanha dos maiores partidos; é de se esperar que, uma vez vedada essa fonte, a classe política se veja na obrigação de fortalecer as demais fontes (leia-se: financiamento público), criando às pressas um novo quadro normativo, em conjunto com o TSE. Disso pode emergir algo muito pior que o atual sistema de financiamento.
Se não cabe ao STF ditar um pacote integrado e coerente de reforma, seria recomendável que os ministros da Corte ao menos atentassem para os efeitos presumíveis das deliberações sobre o sistema político. Decisões contraditórias entre si transmitem sinais ambíguos ao eleitorado e à classe política, e aumentam o potencial de conflito e de judicialização do que deveria ser decidido pela vontade popular. Além do cuidado em não transformar a democracia num cipoal esquizofrênico de regras, a geração de vazios legais também poderia ser mais bem apreciada nos longos debates travados entre os magistrados. Não se trata apenas de ganhadores e perdedores em termos de partidos, governo e oposição; trata-se de rebaixar ainda mais os níveis de inteligibilidade, legitimidade e confiabilidade do sistema político perante a sociedade. Se a somatória de pequenas e aparentemente desconexas intervenções até pode resultar em algo complexo e rico como uma obra de Gaudí, o mais provável é, no entanto, que termine em um amontoado disfuncional e insustentável de puxadinhos.
Pedro Floriano Ribeiro é professor de ciência política na Universidade Federal de São Carlos, onde coordena o Centro de Estudos de Partidos Políticos (CEPP)
Fonte: Valor Econômico
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