- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Em outubro de 2009, num seminário sobre a revisão do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), um diplomata belga citou a defesa da bomba atômica brasileira, feita pelo então deputado federal Jair Bolsonaro, como escada para a tese de que a vocação pacifista do Brasil ainda não gozava da confiança da comunidade internacional. Indignou diplomatas brasileiros presentes com a pressão, repudiada como indevida.
Dez anos depois, o deputado que provocou a altercação tornou-se presidente da República e não tocou mais no assunto. Mas Eduardo Bolsonaro, deputado federal mais votado do país e presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, voltou ao tema em palestra na Escola Superior de Guerra.
"Se tivéssemos [a bomba], talvez fôssemos mais temidos pelo [Nicolás] Maduro, pela China ou pela Rússia. São bombas nucleares que garantem a paz", concluiu o filho 03, dizendo que o tema havia saído de pauta mas poderia voltar. "Terrorista e ditador sanguinário só respeitam a força."
Militares receberam a declaração como uma gota a mais no pote até aqui de asneiras da prole bolsonarista. E diplomatas, como uma ingerência a mais de um deputado que aposta em sobreviver ao pai como liderança da direita no continente. O que ninguém entendeu é como um parlamentar tão alinhado com os Estados Unidos, que têm a inexistência de outra potência nuclear no continente como cláusula pétrea de sua diplomacia, sustentou tamanha aleivosia.
Eduardo nunca escondeu seus vínculos com radicais da direita internacional, como o ex-marqueteiro de Donald Trump Steve Bannon. Mas tem acesso ao primeiro-ministro húngaro, Viktor Órban, e ao vice-primeiro ministro italiano, Matteo Salvini, que já o receberam em seu gabinete, além do presidente americano, de cujo encontro com o pai na Casa Branca, foi a única testemunha.
Como tudo no governo Bolsonaro, a reprise do enredo da bomba tem sinais trocados. Acontece num momento de renovada pressão para que o Brasil assine o protocolo adicional do TNP. Quando foi estabelecido, há 50 anos, o tratado veio assentado num tripé: a não proliferação de armas nucleares, a cooperação pacífica para a transferência de tecnologia nuclear para fins pacíficos e a destruição das armas existentes. Os dois últimos ficaram no papel e o primeiro é um copo meio cheio ou meio vazio, dependendo do gosto do freguês.
Quando o TNP foi assinado, eram cinco os países detentores da bomba (EUA, China, Rússia, Reino Unido e França). Hoje são nove (mais Índia, Paquistão, Coreia do Norte e Israel), argumentam os críticos, mas poderiam ser 21, retrucam os mais moderados.
Todos os governos da ditadura resistiram a assinar o TNP por considerá-lo afronta à soberania nacional. Meses antes, o Brasil aderira ao Tratado de Tlatelolco, que vetava uso bélico da energia nuclear e serviria de resistência latino-americana ao tratado patrocinado pelas potências nucleares.
Data dessa época o relato, ao ex-chanceler Celso Amorim, do diálogo entre o principal negociador brasileiro, Ovídio Melo, já falecido, e um diplomata do Departamento de Estado americano. "Até quando o Brasil vai brincar de filho que desafia o pai? Saibam que se o filho sair de casa não vai poder voltar." Com a redemocratização, o compromisso pacifista foi selado na Constituição, mas não segurou a pressão. O TNP acabaria por ser assinado no governo Fernando Henrique Cardoso.
As pressões pelo protocolo adicional cresceriam com as tensões entre o Irã e os EUA. Apesar de nunca ter sido provado que os iranianos tinham capacidade de desenvolver armas nucleares, o estabelecimento de um programa secreto foi combustível bastante para fazer crescer a pressão por um protocolo adicional que garantisse inspeções mais amplas e transparentes.
Mais recentemente, para fazer frente à pressão, o governo Michel Temer, que tinha no ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), o general Sérgio Etchegoyen, uma das principais barreiras ao protocolo adicional, levou à frente o Tratado para Proibição de Armas Nucleares e dele foi o primeiro signatário, sendo seguido por 42 países. Ao contrário do TNP, o acordo não comporta exceções, nem esperanças de vir a ter a adesão das grandes potências nucleares. A resistência não foi vencida no governo Bolsonaro, mas a discussão já entrou na Marinha e no Itamaraty.
Todo o quiproquó gira em torno do futuro do submarino a propulsão nuclear. Principal projeto das Forças Armadas, o projeto começou no governo João Figueiredo. Isolado pelos EUA, o Brasil partiu para a tecnologia própria e, em 1988, concluiu o ciclo de enriquecimento de urânio.
Hibernou por 20 anos e foi retomado no governo Luiz Inácio Lula da Silva, sob o argumento, reforçado pelo pré-sal, de que, a patrulha da área que os militares chamam de Amazônia Azul, precisaria de um submarino com autonomia para percorrer a costa submerso sem reabastecimento - "É um celular que não precisa recarregar", resume um almirante.
Nesse mercado, ninguém transfere tecnologia, mas em 2008 o Brasil fechou acordo com a França para o desenvolvimento do casco. O reator é 100% nacional. O objetivo é partir dos 20% de nacionalização, do primeiro submarino convencional lançado ao no ano passado, o Riachuelo, para os 85% do modelo a propulsão nuclear em 2029, quando o projeto, se cumprido o cronograma - e o orçamento de R$ 35 bilhões -, estaria concluído. A Marinha tem ojeriza à idéia de receber um submarino pronto e acabado, como o fez a Índia. É o primeiro passo, como diz o almirantado, para destruir o projeto nacional.
O país não produz urânio enriquecido em quantidade suficiente nem para atender às usinas de Angra I e II. Enfrenta vetos ambientais para explorar as minas do país, na Bahia e em Minas Gerais, e orçamentários para construir uma terceira usina. Fez, no entanto, duas vendas de urânio para a Argentina no ano passado, 30 anos depois de conseguir enriquecê-lo.
Em 2015, o projeto enfrentou um baque com a prisão do almirante da reserva Othon Silva, ex-presidente da Eletronuclear e entusiasta da nacionalização do submarino. O alarme não varreu a corrupção do projeto. Para entrar no mercado americano, uma empresa austríaca (MAB) teve que fazer uma leniência em que acabou confessando suborno a um engenheiro brasileiro (Renato Del Bozzo) da Amazul, empresa criada para desenvolver as tecnologias do programa nuclear brasileiro. Com a prisão de Del Bozzo no início deste ano, o Centro Tecnológico da Marinha, com sede encravada na Cidade Universitária da USP, criou um núcleo de compliance para melhor filtrar os contratos. Os principais responsáveis pelo projeto mantêm escolta permanente.
A estratégia para viabilizar o submarino passa pelo desenvolvimento de usos comerciais da energia nuclear, na medicina e na indústria. Esses usos gerariam demanda suficiente para justificar o aumento da produção de urânio enriquecido. No mês passado, a Eletronuclear lançou consulta para Angra III, um investimento que pode chegar a R$ 10 bilhões, e tem russos e chineses como os maiores interessados.
O projeto enfrenta as restrições orçamentárias da Defesa. O almirante de esquadra, Marcos Olsen, diretor-geral de Desenvolvimento Nuclear e Tecnológico da Marinha, informa que o orçamento do submarino de propulsão nuclear foi reduzido de R$ 549 milhões este ano para R$ 403 milhões, um recuo de 27%, menor do que os 44% de contingenciamento imposto ao orçamento total da Defesa. Na gestão do projeto, a maior preocupação são as multas decorrentes de não cumprimento de contratos internacionais.
O protocolo ainda divide a Marinha. Seus críticos taxam de ilusória a crença num acesso facilitado a equipamentos de ponta e temem que as exigências de transparência exponham em excesso a tecnologia autóctone já desenvolvida. O front diplomático trata a discussão do protocolo como uma maneira de mostrar o Brasil aberto ao tema sem descartá-lo ou demonstrar avanço concreto ao seu endosso.
Seus defensores apoiam-se no argumento de que o submarino avançaria com menos percalços por desarmar desconfianças internacionais em relação a um país que desenvolve aquela que é considerada a arma mais letal do mundo, mas o faz para fins pacíficos. Argui-se, ainda, que o Brasil já chegou num ponto de não retorno no projeto, e que os segredos tecnológicos podem ser resguardados nos anexos, com cláusulas que incluem, por exemplo, a velocidade dos passos com a qual os inspetores podem passar pelos equipamentos.
Interlocutor dos almirantes envolvidos no projeto, o professor de relações internacionais da FGV Matias Spektor não vê ganhos materiais, mas políticos, com a assinatura do protocolo, por denotar a transparência de primeiro país do mundo, sem armas atômicas, a fazer um submarino de propulsão nuclear.
Em artigo publicado pela Bloomberg, em março, o almirante aposentado James Stavridis, ex-comandante na Otan, criticou o aceno de Trump à entrada do Brasil no bloco com o argumento de que o país não demonstrava adesão suficiente à ordem mundial preconizada pelo bloco. Para responder a esse tipo de ponderação, embaixadores mais abertos ao protocolo adicional sustentam que, à ideia de um submarino como garantia para a Amazônia Azul, deveria estar contraposta aquela de que o equipamento torna o país um ator mais relevante para a segurança mundial.
A dúvida que permanece é como negociar com os americanos, falcões dessa governança global, num momento de desalinho dos militares brasileiros com um comandante-em-chefe das Forças Armadas que, em muitos momentos, demonstra mais afinação com as alas mais radicais da política externa americana, do que com o Itamaraty ou com seus comandantes militares.
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