- Valor Econômico
O modo de fazer política de Bolsonaro e Cristina
O presidente Jair Bolsonaro está muito preocupado, a julgar por suas palavras, com a possibilidade de a ex-presidente Cristina Kirchner ser protagonista nas eleições da Argentina e dar as cartas no próximo governo. Para quem viveu o governo de Cristina, é irresistível estabelecer o paralelismo entre o atual chefe de Estado brasileiro e a atual senadora argentina.
O exercício é possível, separando-se, desde o início, o que os distancia. O regime militar provoca uma repulsa unânime na sociedade argentina, tornando-se impensável o aparecimento de qualquer força política que se proponha a fazer o resgate da memória da ditadura, por mais conservadora que seja. Bolsonaro exalta o período autoritário. Cristina alinhava-se taticamente ao governo venezuelano no cenário internacional e mantinha relações glaciais com os Estados Unidos. O presidente brasileiro é um cabo eleitoral de Trump. Na política econômica o governo Bolsonaro também em nada se assemelha ao kirchnerismo, ao menos por ora. Afora algumas declarações polêmicas e gestos não houve desvio de curso do liberalismo de Paulo Guedes para o dirigismo divorciado do bom senso que existiu na Argentina. Ao contrário de Bolsonaro, por outro lado, Cristina nunca cortou recursos da área social.
No resto, há muita semelhança.
No tempo de Cristina a polarização política levou à sociedade argentina a uma situação de quase ruptura. Era o que se chamava à época de "la grieta" (fenda, fissura, rachadura) que tornava a convivência civilizada impossível nas redações, nas universidades, nos ambientes de trabalho e mesmo nas famílias.
Cristina tinha o seu guru de além-mar. Ela se inspirava em um cientista político que morava no exterior, um estudioso do populismo, Ernesto Laclau (1935-2014). Autor do livro "La Razón Populista", Laclau via a atividade política como o exercício de uma guerra, em que a confrontação permanente é a pedra angular. Era a partir da identificação e da denúncia de inimigos do povo que líderes carismáticos, como Cristina, conseguiam forjar alianças e consolidar o poder.
Em tempos que antecederam a fúria das redes sociais, Cristina declarou guerra ao principal veículo de mídia do país. Convocava redes nacionais de TV e rádio para vituperar contra a "cadeia nacional do ódio e do desânimo". Seus aliados colocavam cartazes nas ruas com a foto dos jornalistas "inimigos", para que a população pudesse identificá-los e agredi-los quando fossem encontrados.
Cristina aparelhou a máquina pública com militantes de espírito sectário. Informações fiscais de empresários e artistas que se atreviam a criticá-la chegaram a ser vazadas pela própria presidente, um extremo a qual Bolsonaro felizmente sequer se aproximou.
A filha da presidente, Florencia, lhe passou a faixa e o bastão presidencial quando da sua posse no segundo mandato, em 2011. Seu filho, Maximo, era o chefe da "La Cámpora", uma corrente ultrakirchnerista que se destacava pela ocupação de espaços públicos e a guerra sem quartel contra governistas que não defendiam Cristina com o denodo esperado.
Cristina e seu marido e antecessor, Nestor Kirchner (1950-2010) tinham relação conflituosa também com o Poder Judiciário. Nestor conseguiu promover o impeachment do presidente da Suprema Corte, logo no início de seu governo. Cristina incitou, sem sucesso, os seus aliados a pedir o afastamento de outro ministro por demência.
Se Bolsonaro pode contar com lideranças radicalizadas entre os caminhoneiros para tocar fogo no país, se necessário, Cristina tinha os "piqueteros", que semana sim, a outra também, interrompiam o tráfego nas principais artérias de Buenos Aires. Mas a ex-presidente argentina não conseguiu ter o controle das ruas, pelo contrário. As lideranças oposicionistas a suplantaram no início do governo, com uma mobilização de ruralistas que levou à sua maior derrota política; e no fim do seu segundo mandato, quando panelaços tornaram-se rotina.
Sequer o vice incômodo faltava: o de seu primeiro mandato, Julio Cobos, aderiu aos oposicionistas no momento de maior fragilidade política da então presidente. Naquele país, o vice exerce a função de presidente do Senado, e nesta condição Cobos ajudou a derrotar o governo. Nunca mais trocaram uma palavra.
A exploração de tragédias pessoais também está presente em um e outro caso. Bolsonaro teve inegáveis dividendos políticos depois de sofrer um atentado que quase o matou, menos de dois meses antes da eleição. Cristina perdeu o marido, vítima de um infarto fulminante, e o seu luto tornou-se um emblema. Só o retirou depois de três anos, quando estava em fim de mandato. A ameaça à vida, no caso bolsonarista; e a viuvez, no argentino, revestiram estas lideranças com uma aura de martírio e de predestinação.
Por último, há uma questão de estilo. Cristina tinha por hábito radicalizar quando se sentia acuada. Nos momentos mais agudos da confrontação política, algo com frequência semanal, ela dobrava a aposta: tornava-se ainda mais agressiva, menos tolerante, levava as situações ao paroxismo. Bolsonaro parece ter a mesma índole, embora cinco meses de governo seja pouco para estabelecer um padrão de comportamento.
Também é cedo para saber no caso brasileiro o que está por vir. A vitória de Macri em 2015 não estava relacionada apenas a uma reação do eleitorado à ruinosa situação econômica da Argentina, ou aos escândalos em que Cristina se meteu, e que a levam a ser julgada hoje no famoso tribunal da rua Comodoro Py. Guardava relação também com uma exaustão no país. A Argentina, sem saber o que a esperava, queria normalidade, moderação, governo sem sobressaltos. Mas a era kirchnerista durou 12 anos e se estendeu por três mandatos presidenciais.
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