- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Os impasses que estamos vivendo, quanto à Previdência Social e a outras "onerações" que bloqueiam a racionalidade da livre circulação do capital, nos vêm de longe. Faz tempo que empresas, no mundo inteiro, esperneiam para remover os supostos entraves que o trabalho e o trabalhador representariam à reprodução ampliada do capital. Mas o trabalhador é comprador e consumidor. É o único ser dos dois lados do processo do capital. Mata quando é morto economicamente.
Empresas querem outras remoções: a liberação das terras das populações indígenas, a supressão das salvaguardas de proteção do ambiente, o confisco das terras de posseiros, de quilombolas e sobretudo a destruição de seus legítimos e justos modos de produção, de onde vem parte de nossa comida. É a marginalização dos que, até aqui, tem carregado nas costas o desenvolvimento econômico brasileiro, o que inclui os que, ainda crianças, começaram a trabalhar na roça e na fábrica e descobrem-se agora seres humanos invisíveis ao direito.
Copiar experiências de outros países tem preço, nem sempre resolve problemas. Antes os multiplica. Coisa de gente que não tem originalidade onde ela é mais necessária. Aqui, o capitalismo da cópia é apenas caricatura. É que, antropologicamente, vemos o que os outros não veem; sabemos o que eles não sabem. Ainda que no âmago do processo histórico brasileiro esteja nossa historicidade diferente, a do nosso protagonismo alienado e precário, de colonizados.
Claro que nisso está também nosso capitalismo de grandes potencialidades que não se realizam por insuficiência de talentos empresariais, por excesso de amadorismo. E pelas limitações de gestão pública na administração das condições da riqueza, de sua multiplicação e de sua distribuição social. Principalmente, por um afã de lucro incapaz de reconhecer que o fundamento do lucro capitalista é a capacidade de compreender e administrar com justiça as circunstâncias, as possibilidades e as irracionalidades do capital. Aliás, precisamos da volta de um empresariado criativo, que ocupe o lugar do empresariado cúmplice das voracidades de poder e riqueza.
Nossos impasses revelam que o capital quer liberdade, quer livrar-se do que perturba sua multiplicação linear. Quer eliminar os entraves de suas obrigações sociais e morais. Na medida em que tal anseio cai sobre os ombros do trabalhador, o que temos é que o capital está à procura do trabalho puro, que é o trabalho sem contradições. Deixar ao mercado a regulação dos direitos sociais é insano. O mercado é egoísta, é péssimo juiz do que é justo e do que é injusto.
A tensão envolvendo a Previdência Social, a questão ambiental, a questão agrária, a questão indígena, é expressão de problemas mal encaminhados. São questões porque os direitos sociais nelas ameaçados são direitos históricos, de todos, legitimados na institucionalização que os reconheceu e consolidou.
Nos países em que as transições envolvendo o trabalho encontraram uma classe trabalhadora menos frágil, as soluções foram socialmente criativas. Na Inglaterra da Revolução Industrial, o afã do lucro pelo lucro teve que curvar-se aos direitos sociais que tinham as corporações de ofício, os trabalhadores. Isso civilizou o capital e o capitalismo inglês, o capitalismo protótipo.
A eleição de 2018, de todos os que chegaram ao poder por meio dela, abriu a guerra pela imposição de uma concepção socialmente irresponsável da vida e da história. Deu "carona" à obsessão de riqueza que nasce de uma compreensão primária e pobre do capitalismo.
A fantasia desses supostos obstáculos ao capital dá identidade política, mais do que econômica, a estranhos seres residuais da história, figuras marginais do capitalismo, como os que chegaram ao poder no dia 1º de janeiro de 2019, aglutinados pela enorme brecha e a profunda crise da representação política no Brasil. O nada se incorporou, mas por ser nada perde-se no lodo dos individualismos personalistas de sujeitos que representam apenas seus próprios interesses minúsculos.
A sociedade é a mediação que dá vida ao capitalismo. Uma das virtudes do verdadeiro empresário é a de reconhecer-se como funcionário do capital e não funcionário de si mesmo. Nesse sentido, capaz de reconhecer o outro que está oculto nessa personificação.
Essa é uma revelação da sociologia. Por meio dela, pode-se compreender que as invisibilidades dos meandros do capital expressam pequenos poderes que não são nem do capitalista nem do Estado. A falta dessa compreensão torna a empresa sujeita aos riscos de uma racionalidade aparentemente lucrativa, mas antissocial, na ameaça de uma trama que o empresário e seus executivos não podem ver.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano” (Contexto).
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