Noves
fora, não estamos na iminência de um retrocesso, estamos bem no meio dele
A
disputa eleitoral deste ano nos Estados Unidos escancarou para todo o mundo a
facilidade com que um país se pode deixar arrastar para a radicalização e, com
ela, para o retrocesso.
Em
1967, Anthony Downs, um dos mais celebrados cientistas políticos americanos,
elaborou um requintado argumento a fim de demonstrar que os Estados Unidos
dificilmente cairiam em tal armadilha. Numa sociedade próspera, com apenas dois
grandes partidos, sem tradições ideológicas comparáveis às da Europa, um
candidato teria de pender para o centro, sob pena de se isolar e perder de
lavada. A virtude estaria sempre no centro. Tal argumento podia ser lido como
um retrato fiel do que acontecera três anos antes, quando o destempero radical
do sulista Barry Goldwater empurrou o Partido Republicano para um abismo.
Aquele pleito e a teoria de Downs casavam-se perfeitamente. Nada que ver, é
claro, com a eleição de 2020. Ainda próspero, mas economicamente muito mais vulnerável,
sem ideologias do tipo europeu, mas com algo muito pior, um racismo desabrido e
crescente, a polarização se impôs no país desde a eleição de 2016.
Donald
Trump não sucumbiu como Barry Goldwater. Ao contrário, mostrou-se altamente
competitivo. Transformou a grossura verbal em potente arma política, a ponto de
se apresentar como vítima de fraude nas urnas. Chega mesmo a declarar que não
passará o cargo a Joe Biden no dia 20 de janeiro, como prescreve a lei. Quem
diria, o modelo mundial de democracia subitamente transformado em ícone de
república bananeira.
Claro,
nós, brasileiros, rirmos do grande irmão do norte é como o roto rir do
esfarrapado. Primeiro, porque não somos uma sociedade próspera: somos bem o
contrário disso. Segundo, porque não temos dois partidos centenários,
teoricamente capazes de moderar os enfrentamentos políticos. Temos 26 siglas
representadas na Câmara dos Deputados, nenhum deles detendo sequer 20% das
cadeiras, sendo, por conseguinte, muito mais parte do problema que da solução.
No nível de Trump, ou aspirando a tal, temos no Planalto o sr. Jair Bolsonaro,
que não transformou a pandemia num desastre muito maior porque não foi capaz, e
porque o Brasil, nesse aspecto, tem pelo menos uma defesa de que os Estados
Unidos carecem: um sistema público de saúde.
Eis
a diferença fundamental: não tivemos uma polarização entre dois partidos
políticos com identidades bem delineadas, mas entre duas maçarocas
desorientadas, cujo único objetivo era se destruírem uma à outra. Clara
ilustração disso é a facilidade com que Jair Bolsonaro recorreu ao clássico
estelionato eleitoral, trocando a “nova política” que prometera instaurar, pelo
“Centrão”, lídimo representante do fardo arcaico que insiste em se perenizar.
Noves fora, não estamos na iminência de um retrocesso: estamos bem no meio
dele, com remotas chances de ajustar as contas públicas nos próximos cinco
anos, na obrigação de destinar outra grande soma ao auxílio emergencial, caso o
coronavírus retorne numa onda ainda pior, e, para chover um pouco no molhado,
incapazes de superar nosso obsceno quadro de desigualdades sociais e
educacionais e nossos problemas de saneamento e segurança.
Não
se requer nenhuma lupa para perceber que as entranhas do Estado brasileiro
estão tomadas por uma chusma de grupos de interesse (as chamadas corporações),
altruístas como piranhas que se agitam num rio à espera de vacas que se
aproximam. Alguém sabe como moderar o apetite de piranhas? No plano político,
teoricamente existem dois mecanismos: de um lado, os três Poderes (Legislativo,
Judiciário e Executivo) e, em particular, os partidos políticos; de outro,
elites dignas do nome, ou seja, grupos dotados de recursos (econômicos,
educacionais, etc.) e imbuídos de um grau razoável de dedicação ao bem comum.
No Brasil, infelizmente, as instituições que corporificam os três Poderes e os
partidos têm funcionado mais como correias de transmissão do que como
mecanismos de balizamento e contenção dos grupos de interesse.
Restaria
falar sobre as elites, questão mais complexa, sobre a qual o espaço disponível
apenas me permite uma breve delineação. Desde o advento do petismo temos ouvido
que elites conspiratórias são a causa última dos nossos males. Observo,
todavia, que essa imagem nada tem que ver com o conceito de elite que sugeri no
parágrafo anterior. Tampouco emprego o termo elite para designar as cúpulas das
organizações corporativas criadas naquele longínquo tempo da ditadura
varguista: federações e confederações da indústria, do comércio, da
agricultura, etc., bem como as entidades sindicais que fazem o contraponto do
lado trabalhista. Admito que indivíduos dotados de algum sentimento
verdadeiramente “elitista” possam existir em tais organizações, mas como tais,
elas não preenchem suficientemente os requisitos que tenho em mente. Um estudo
mais extenso dessa questão deveria começar admitindo que um dos grandes
problemas brasileiros possa ser a carência, e não a abundância de verdadeiras
elites.
*Sócio-Diretor da Consultoria Augurium, é membro das Academias Paulista de letras e Brasileira de Ciências
Nenhum comentário:
Postar um comentário