Não
vote em candidatos que invocam o espectro do inimigo do povo
A Folha reverteu sua
orientação tradicional, de proibir que colunistas utilizem seus espaços para
declarar voto em candidatos. A tradição estava certa: preservava a esfera do
discurso opinativo profissional, destinado a suscitar a reflexão e o debate,
separando-o do discurso
eleitoral, que se move segundo regras utilitárias. Por isso, recusarei a
nova “liberdade”. No lugar de uma declaração positiva de voto, ofereço um guia
eleitoral negativo.
Não
vote em candidatos que:
1.
Invocam o espectro do “inimigo do povo”. A crítica dura do adversário faz parte
do jogo. Mas exibi-lo, explícita ou implicitamente, como “inimigo do povo”,
revela uma alma antidemocrática.
Os
regimes tirânicos apoiam-se no conceito de que as sociedades estão divididas
entre cidadãos leais e traidores, aos quais se reserva a prisão, o degredo ou a
morte. A figura retórica do “inimigo do povo” é a transposição dessa ideia às
condições postas pelo sistema democrático.
Candidatos
que operam por essa lógica estão cometendo uma fraude. O jogo democrático parte
do pressuposto de que todos as candidaturas são expressões legítimas da
pluralidade ideológica da sociedade. Tratar o rival eleitoral como “inimigo do
povo” é violar as regras que asseguram o direito de candidatura do próprio
acusador.
2.
Apresentam-se como porta-vozes da pátria. Tais candidatos não passam de
espertalhões enrolados em bandeiras.
Samuel
Johnson classificou o patriotismo como “último refúgio do canalha”,
num contexto em que distinguia os “autodefinidos patriotas” do patriotismo
genuíno. O segundo é o patriotismo cívico, isto é, o chamado a um esforço
nacional comum pelo bem geral. Já o primeiro é o nacionalismo vulgar, destinado
a extrair proveito pessoal do sentimento de coesão nacional.
A
pátria é de todos os cidadãos —e, portanto, nenhum partido singular pode querer
representá-la. A pretensão abusiva descortina espíritos autoritários: embriões
de ditadores.
3.
Falam em nome de Deus. Tais candidatos colidem tanto com os princípios terrenos
que governam a disputa eleitoral quanto com os valores da fé que alegam
praticar. São falsários, duplamente.
Deus
não tem partido. Fazer campanha usando o nome de Deus é tão patético quanto
agradecer a Deus por um gol marcado. Não há fé nenhuma nas duas atitudes, mas
mera ignorância ou, mais provavelmente, baixa esperteza. O
Estado é laico, única garantia de liberdade para todas as religiões. O
programa oculto do candidato que porta a cruz é exterminar a liberdade
religiosa.
4.
Alegam representar corporações, exibindo-se como representantes de policiais,
professores, médicos, advogados, juízes ou procuradores. Os candidatos
que adicionam
um qualificativo profissional a seus nomes (professor X ou Y, doutor
isso ou aquilo) pertencem a essa coleção de pescadores das lagoas do
corporativismo.
O
Brasil moderno nasceu sob o signo do corporativismo varguista, que continua a
nos assombrar. As corporações são atores legítimos do jogo das sociedades
abertas, por meio de associações e sindicatos que vocalizam suas reivindicações,
exercendo pressão sobre governos e órgãos legislativos. Mas as eleições não
devem se subordinar às suas agendas.
A
Câmara Federal, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais existem
para espelhar a pluralidade política da sociedade, ou seja, dos cidadãos.
Transformá-las em fóruns corporativos é calar a voz dos indivíduos não
organizados em associações ou sindicatos e, ainda, falsear a representação das
próprias corporações, que têm regras próprias para eleger seus representantes.
5.
Promovem a violência
policial. Tais candidatos são bandidos fantasiados nas roupagens de
“cidadãos do bem”. De fato, o que querem é fragmentar as polícias em milícias
privadas, em esquadrões
da morte: bandos de vigilantes com passaporte para assassinar.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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