As sociedades não podem ser reduzidas a curvas de gráficos epidemiológicos
No
feriado natalino, 20 cidades amotinaram-se contra a determinação
estadual que colocou São Paulo na “fase vermelha”.
Simultaneamente, manifestações
de comerciantes em Manaus obrigaram o Governo do Amazonas a
cancelar o decreto de fechamento dos setores “não essenciais” e, dias antes, em
Búzios (RJ), verificaram-se protestos populares contra a decisão judicial de
fechar o município aos turistas.
Milhões
tomaram o rumo das praias no Réveillon. As quarentenas vergam, aos
poucos, sob o peso conjugado da tensão social e da anomia política.
No
começo de tudo, delineou-se uma corrente de epidemiologistas que, hipnotizados
por modelos estatísticos, preconizaram estritas quarentenas sem fim, até o
extermínio do vírus.
Depois, quando desistiram do sonho impossível, alguns deles clamaram por rígidos lockdowns de um mês, garantindo que o congelamento absoluto interromperia a pandemia, uma profecia desmentida pelas experiências práticas de inúmeros países. Hoje, ainda imunes às lições recentes, mas imitados por hordas de “influenciadores digitais” fantasiados de santos, lamentam terem sido ignorados e retomam o antigo discurso.
O
Brasil, segundo país com maior número de óbitos contabilizados pela Covid-19,
ocupa o 22º lugar na lista da taxa de óbitos, atrás de países como a Itália, a
Espanha, o Reino Unido, a França e a Argentina, que fizeram lockdowns radicais.
Todos os países ocidentais nos quais o vírus se espraiou antes de março exibem
elevadas taxas de mortalidade.
A
exceção notável é a Ásia oriental, um mistério cuja explicação talvez se
encontre na relativa imunidade conferida por intensos contatos prévios com
outros coronavírus. Nada disso exime de culpa o negacionismo
místico do governo federal, mas inscreve na moldura correta o impasse
atual.
As
sociedades não podem ser reduzidas a pontos e curvas de gráficos
epidemiológicos. No Brasil, como em tantos países atravessados por fundas
desigualdades e severas restrições fiscais, quarentenas esbarram em limites
estreitos.
O comportamento
dos jovens, aqui ou na Europa, só pode ser alterado por períodos
relativamente curtos. Jornalistas que apontam o dedo acusador para aglomerações
de ambulantes, pancadões da periferia ou praias lotadas fugiram das aulas de
sociologia.
A
pandemia é o teste de fogo das lideranças políticas. Bolsonaro não é Merkel e
nem mesmo Trump, que ao menos deflagrou a corrida pela vacina. Nosso governo
apostou no vírus —isto é, na polarização política, na guerra contra moinhos de
vento, na sabotagem perene das medidas indispensáveis de restrição sanitária. A
ironia é que, dez meses depois, Bolsonaro está vencendo —e não só graças
aos efeitos mágicos do cheque emergencial.
Os
contágios disseminam-se, principalmente no transporte público, na economia
informal, nos bares festivos, em farras de bacanas ou bailes dos pobres. Mas as
ferramentas restritivas dos governadores miram outro alvo: o comércio e os
serviços formais, que já esgotaram suas reservas econômicas e sua capacidade de
resistência.
Para
surpresa dos que praticam o esporte do trabalho remoto ou recebem salários do
Estado, desata-se um conflito que se esparrama pelas ruas e encurrala os
prefeitos. Sua implicação epidemiológica é a desmoralização das quarentenas e
seu fruto político é a conversão dos setores da população mais afetados em
neobolsonaristas. O fim do auxílio emergencial tende a acelerar a dupla crise.
Na
Europa, onde a pandemia foi enfrentada por um sólido consenso político, a
parede das quarentenas começa a fissurar. No Brasil, que elegeu Bolsonaro, ela
desaba em câmera lenta. Inexistem soluções simples para o impasse, mas o ponto
de partida é reconhecer sua natureza, que não é epidemiológica.
A
vacinação em massa tardará. Os governadores que negam o negacionismo precisam
formular novas estratégias.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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