Um dos poucos
consensos entre analistas é que, no interior desse campo onde se movimentam PT,
PDT, PSB, PCdoB, PSOL, REDE e outros partidos menos cotados – e do qual se
exclui uma esquerda que, no subsolo em que se viu colocada pela confrontação
ideológica, já opera em interação com o campo liberal-democrático - , está em
curso um realinhamento de forças, quiçá uma renovação de estratégias, métodos e
programas, que poderá dar cabo da longeva hegemonia do PT sobre ele.
Evidenciada nas
eleições municipais, essa possível tendência ainda precisa passar pelo teste de
uma eleição nacional. Até lá, têm sido comentadas e interpretadas, nessa
direção, as várias alianças eleitorais bem sucedidas que PDT e PSB celebraram -
entre si e com partidos do centro e da centro direita - em muitas cidades
relevantes, alianças das quais estavam ausentes o PT e o PSOL, com o PCdoB
flutuando. Aponta para a mesma tendência (de realinhamento) a maioria dos
comentários sobre a campanha de Guilherme Boulos em São Paulo, em cujo desfecho
relativamente vistoso, os mais afoitos veem um tendencia do PSOL a substituir o
PT como partido-polo de uma frente de esquerda e, os mais realistas, um
movimento de Boulos em direção ao legado lulista, partindo da premissa de que o
PSOL não é Boulos e Boulos não é o PSOL (assunto futuro para outra coluna).
São realinhamentos
com sentido político diverso. Pelo primeiro, puxado pelo PDT e PSB, essa parte
da centro-esquerda integraria, em 2022, uma frente ampla cujo epicentro estaria
fora do seu campo. No segundo caso, haveria uma atualização da antiga ideia de pura
frente de esquerda. Esses dois movimentos podem vir a ser contraditórios, de
modo a um prevalecer e anular o outro - ou complementares.
O paralelismo de
duas frentes anti bolsonaristas, uma de esquerda, outra ancorada ao centro, mas
com participação de setores da centro-esquerda e ambas convergindo, num segundo
turno, para se contrapor à reeleição de Bolsonaro, delineia-se como um possível
e benigno desdobramento lógico das alianças que se firmaram para as eleições de
2020. Trata-se, entretanto, de conjectura destituída de caráter de predição.
Por outro lado, é possível ver três modos pelos quais poderia prevalecer um dos
dois tipos de realinhamento, anulando-se o outro.
Modo um seria a
eventual frente ampla conseguir atrair o eleitorado de esquerda e anular a
competitividade eleitoral de uma frente esquerdista, repetindo-se, no pleito
nacional, o que se assiste, no momento, na campanha de Baleia Rossi à sucessão
de Rodrigo Maia na Câmara dos Deputados. Como os eleitorados dos dois pleitos
são completamente diferentes, a hipótese só não é delirante se a frente tiver
um candidato mais à esquerda (Ciro Gomes, por exemplo), reeditando a fórmula de
FHC, de um nome de esquerda sem um programa de esquerda, ou até contraposto ao
dela, como ao da extrema direita. Ou se o centro construir um nome que dialogue
com o andar de baixo do eleitorado nacional (pode ser, por exemplo, Luiz
Mandetta] a ponto de fazer a centro-esquerda calcular que vale a pena.
Modo dois seria se Boulos conseguisse fazer do Brasil um imenso São Paulo e, por gravidade, atraísse PSB e PDT para uma frente de esquerda, tirando o chão da candidatura de Ciro Gomes, ou aliando-se com ela, murasse a outra frente, cujo arco se restringiria, assim, ao centro e à centro-direita. Modo três seria a reinvenção da polarização direita-esquerda com fragmentação do centro político. Fala-se aqui do espectro de 2018 assombrar o processo político, por provocação de algum fator externo oposto à lógica moderadora do sistema político-partidário.
Um desses catalisadores
negativos pode ser o recrudescimento da crise sanitária, econômica e social com
os elementos explosivos aí embutidos, a saber, a politização do tema da
vacinação, o agravamento do desemprego, o fim do auxilio emergencial,
bombas-relógio potencializadas pela inércia governamental e pelo estímulo
aberto do bolsonarismo à desobediência civil e ao desafio às instituições, como
ante sala para uma solução autoritária. É visível que a extrema direita retoma
sua ofensiva de maio desse ano, assim como é previsível que parte da esquerda
não resista à tentação de aceitar o confronto nesse terreno.
Um segundo possível
catalisador do espectro de 2018 é a reintrodução, como pauta central do País,
através da mídia e do Sistema de Justiça, do tema da corrupção do sistema
político. Essa iniciativa não é politicamente inocente, no sentido de que há,
no interior da sociedade política, forças que trabalham contra a lógica
moderadora do sistema representativo. Dentre elas a mais conspícua é, por
definição, o próprio bolsonarismo. Mas há também atores que vêm perdendo
terreno e protagonismo com a dinâmica agregadora que tem prevalecido das
eleições municipais para cá, tendo como centro irradiador o Congresso Nacional.
Refiro-me aos setores cujas atitudes e
pautas reportam-se ao lavajatismo e à parte da esquerda que vem sendo levada a
reboque pelo processo de realinhamento em curso no próprio campo, como acima
comentado. Detenho-me neste ponto porque
há uma nuance que não pode passar despercebida. Um eventual retorno de uma cena
política polarizada pelo tema da corrupção, com suas implicações policiais e
judiciais, não necessariamente terá, como protagonistas, os atores de
2018.
Outra parece ser a
visão da experiente jornalista Eliane Cantanhede, em artigo (“O pino da
granada”) publicado em sua coluna em “O Estado de São Paulo”, em 29.12.20. Para
ela, “ao abrir os arquivos hackeados da Lava Jato para os advogados do ex-presidente Lula, o
ministro Ricardo Lewandowski tirou o pino da granada
e vem por aí uma explosão política com epicentro no Supremo Tribunal Federal e estilhaços nas eleições presidenciais de 2022”. E
conclui que o efeito político disso “deve ser favorável ao presidente Jair
Bolsonaro”, porque pode facilitar a anulação de processos contra Lula, torná-lo
elegível e, assim. “eletrizar o País e acirrar a polarização Lula versus
Bolsonaro em 2022, o que ainda é favorável ao capitão, como em 2018”.
Devemos admitir que
seja sim, uma granada. O risco de reiterar a polarização é real porque a
personificação populista da esquerda na figura de Lula, aos olhos de uma larga
faixa do eleitorado, e a predisposição de outra ampla faixa, ao populismo
lavajatista, seguem sendo entraves ao livre fluxo da democracia e da política
de isolamento da extrema direita. Mas quem daria a Bolsonaro o aval para se
apresentar ao eleitorado como expoente desse segundo populismo se o perigo
petista já não se apresenta como em 2018, a ponto de se apoiar o capitão para
evitá-lo? Sem o “perigo do retorno” e sem o fator Lava Jato/Sergio Moro,
Bolsonaro e as eleições de 2018 não teriam sido o que foram. Da explosão da
granada de Lewandowski, temida por Cantanhede, Moro sairia mais fraco do que já
se encontra. O script lavajatista não tenderia a vagar em busca de um novo
ator? Não se duvida que Bolsonaro possa disputar esse lugar, mas que o
conseguirá não é uma consequência lógica da explosão, pois não faltarão
concorrentes a tentar se apropriar da retórica faxineira. Ela é candidata a se
diluir como cereja de muitos bolos, de variados sabores ideológicos. Mas
dificilmente será o centro do debate num País traumatizado pela pandemia e pela
cumplicidade do Governo com ela.
Nesse ponto,
podemos voltar à esquerda, nosso foco. Quem prestou atenção à campanha de
Boulos em São Paulo viu que não se afastou da sua pauta o tema da corrupção.
Muito pelo contrário, tentou fazer dele um foco para desestabilizar o oponente,
através do questionamento da figura do seu vice. Detonada a granada pelo STF, a solidariedade a
Lula, no campo da esquerda realinhada, iria até o ponto da desmoralização de
Moro para colar no ex-presidente a etiqueta de perseguido. Mas a partir desse
ponto, quem na esquerda renunciaria ao tema para apostar em Lula como piloto do
novo navio? O realinhamento no âmbito da esquerda (e até no próprio PT) já
chegou a um ponto em que esse revival não tem mais espaço. Numa eventual
reiteração da polarização estéril de 2018, a fila terá andado dos dois lados.
Nem Moro nem Lula podem mais representar o que representaram.
Como político
realista que é, Lula sabe disso melhor do que ninguém. Sabe que precisa usar
uma eventual reabilitação eleitoral - advinda da sua batalha junto à Justiça
para levar a Lava Jato a ocupar o seu lugar no banco de réus - para conquistar
um mandato em condições menos incertas, do que se aventurar a uma candidatura
presidencial. É mais racional que opte – como se cogita e se planta em sites e
colunas - por uma candidatura ao Senado na Bahia. Se vitoriosa, renderia um
abrigo institucional para prosseguir nas suas lides judiciais, que voltariam à
estaca zero, mas não se extinguiriam. O lugar nacional que tentaria ocupar seria
o de apresentador, sob protestos do PSOL, de Guilherme Boulos como príncipe
herdeiro de sua majestade pretérita. Já na Bahia, a primeira barba tostada
seria a do Governador Rui Costa, cuja estratégia política seria virada de
ponta-cabeça por esse eventual movimento de peças em que o Estado se tornaria
um bunker da resistência à renovação da esquerda. Mas nunca é demais repetir:
isso tudo poderá ocorrer se a política moderadora não prevalecer.
* Cientista político e professor da UFBa.
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