Entre os diferentes modos de compreender o que é a democracia, em termos funcionais, destaca-se o que a encara como um regime de dispersão e neutralização de confrontos que podem colocar em risco as estruturas sociais. Nessa perspectiva, a democracia é vista como um entrechoque entre interpretações e aspirações, entre alternativas e opções, percepções e convicções, que se desenvolve em espaços públicos sujeitos a extravasamento de paixões, aspirações, reivindicações, promessas, dissimulações, maniqueísmos, agressões morais e mentiras.
Para
neutralizar os riscos de corrosão do pacto social daí decorrentes e viabilizar
a construção de decisões coletivas com base em diálogos construtivos, evitando
o retrocesso do Estado civil para o estado da natureza, a democracia
desenvolveu um sistema de freios e contrapesos — ou seja, regras e
procedimentos, como o voto universal, eleições livres e o princípio da maioria,
que canalizam reivindicações e desarmam insatisfações, ao mesmo tempo em que
permitem construção de acordos coletivos e de deliberações públicas.
Se
em vários momentos na segunda metade do século XX a democracia foi marcada por
embates ideológicos profundos e acirrados, ainda que por vezes sem que os
líderes políticos e partidários se desqualificassem reciprocamente no plano
moral, nas duas primeiras décadas do século XXI isso mudou. Em decorrência dos
avanços das tecnologias de comunicação e de informação, os partidos se
fragmentaram, as linhas de demarcação que separam responsabilidades e delimitam
as diferentes zonas de poder se tornam mais porosas e novos espaços políticos
surgiram, intercruzando-se e se justapondo, enfraquecendo com isso a mediação
parlamentar. No mesmo sentido, a imprensa tradicional, as novas mídias e
os antigos e novos espaços políticos justapostos foram sendo progressivamente
envolvidos por atitudes cada vez mais polarizadas e por retóricas cada vez mais
agressivas de políticos cuja identidade é forjada mais pelo que negam e agridem
do que pelas ideias que defendem. Em vez de uma convivência democrática entre
adversários, ao destilar o ódio e recorrer a agressões morais e à mentira
sistemática uma corrente entre os novos atores converteu a política não em
disputa ou competição, mas numa guerra, em cuja dinâmica quem não é amigo é inimigo
e como tal tem de ser liquidado.
Foi o que se viu, por exemplo, nas atitudes do primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán logo após sua reeleição, em 2014, descrevendo o futuro de seu país na perspectiva de um Estado autocrático, que não rejeitaria os valores da democracia liberal, mas não os adotaria como elemento estruturante da organização das instituições húngaras. Foi o que também se viu no final do governo Trump, com o triste espetáculo da invasão do Capitólio, em janeiro.
Também
foi o que se viu entre nós, com a escolha de ministros civis e militares medíocres,
mas que se ajustam à maneira de agir, às opiniões xenofóbicas e racistas e aos
objetivos ditatoriais de Bolsonaro. É, igualmente, o que se tem visto com as
sucessivas afrontas promovidas por ele e sua falange autocrática aos Poderes
constituídos, com a construção de inimigos fantasiosos — como um Paulo Freire
ou a TV Globo, por exemplo — para que possam radicalizar o debate político e
com o progressivo aparelhamento dos mecanismos constitucionais de controle do
Executivo, levando-os a fazer vistas grossas para os crimes de responsabilidade
e os crimes comuns praticados pelo inquilino do Planalto. É o que se tem visto,
ainda, com a militarização das várias áreas de políticas públicas e as
facilidades legais para o crescente armamento do que o presidente chama de
“cidadãos de bem”, mas que na prática nada mais são do que suas milícias. Tudo
isso com o apoio de parlamentares abjetos oriundos da área da segurança pública
que, lembrando a “dialética da malandragem” — termo cunhado por Antônio Cândido
em ensaio clássico sobre Memórias de um Sargento de Milícia — não
conseguem diferenciar as fronteiras entre a moralidade e a imoralidade.
Em
contextos como esses, o que esperar da democracia? A corrosão democrática tende
a se acelerar, fundada em um discurso do ódio de gente incapaz de saber que,
sem coexistência, divergências e competição não há vida política nem uma
sociedade aberta? Ou as instituições democráticas resistirão? Apesar das
sucessivas tensões institucionais causadas pela estratégia bolsonarista de ir
testando o grau de resiliência das instituições e das liberdades públicas,
talvez seja possível, com a devida prudência, apontar dois cenários possíveis.
O
primeiro cenário envolve esse risco de conversão da democracia liberal em uma
democracia iliberal — conceito desenvolvido por Fareed Zakaria em artigo
publicado na Foreign Affairs, no ano de 1997. Os problemas por ele
suscitados foram aprofundados mais recentemente por Adam Przeworski, em um
importante livro sobre as crises democracia, editado em 2019. Também chamada de
“democracia de baixa intensidade” ou de “autoritarismo furtivo” e entendida
como processo de “desconsolidação da democracia liberal”, a democracia iliberal
é um sistema de governo em que, os cidadãos votam, mas suas garantias vão sendo
progressivamente esvaziadas e eles não exercem controle sobre as atividades
daqueles que detêm o poder efetivo.
A
democracia iliberal encontra as condições para crescer quando a economia passa
por períodos de estagnação, a circulação de riquezas diminui, as receitas
fiscais caem e a desigualdade aumenta. Programas sociais não atingem toda
população desvalida e sem representação. Políticas públicas são canceladas em
nome da austeridade fiscal e a situação de incerteza e insegurança sociais daí
decorrentes abre caminho, pelo voto, para o surgimento de concepções
regressivas de ordem pública e para a degradação do debate político. A
progressiva ascensão de um populismo nacionalista e autoritário desenfreado
menospreza a pluralidade inerente a uma sociedade democrática, desqualifica o
diálogo como meio de resolução de divergências e mobiliza a população contra
inimigos reais ou inventados.
Desse
modo, quando votam em candidatos populistas, nacionalistas e autoritários, o
eleitorado acaba, paradoxalmente, restringindo seu direito de determinar o rumo
de seu país, ao mesmo tempo em que endossa propostas de resolução pela força
bruta, em detrimento da segurança do direito. A democracia iliberal é, assim,
um regime no qual regras e procedimentos democráticos são utilizados por grupos
autoritários com o objetivo de reduzir as mediações institucionais, minar
garantias fundamentais, inviabilizar juridicamente eventuais resistências e de
alterar as regras democráticas com base nas quais seus candidatos se elegeram.
Se de um lado a democracia iliberal recorre a instrumentos do regime
democrático em busca de uma pretensa tintura de legitimidade, de outro não esconde
a propensão por uma concepção de poder fundada em técnicas ardilosas de
transgressão da ordem constitucional.
Em
linha oposta, o segundo cenário parte das premissas de que a “desconsolidação”
da democracia seria mais mito do que fato e de que a democracia liberal — uma
construção política que experimenta avanços e retrocessos que variam nos graus
de representatividade, liberdade e possibilidade de alternância no poder – é
mais estável do que parece com relação àqueles que propagam o ódio. Aqui, a referência
intelectual é o filósofo basco Daniel Innerarity, que tem discutido se a
fragilidade da democracia é um fato ou apenas um mito. Doutorado na Alemanha,
professor do Instituto Universitário Europeu, em Florença, e diretor do
Instituto de Governança Democrática, na Espanha, ele é autor de importantes
ensaios e livros sobre democracia na perspectiva da teoria dos sistemas.
“Vivemos numa época em que há muito ódio, mas pouca violência. Convém não
confundir as duas coisas. Este grau de hostilidade intensa do qual padecemos
hoje em nossas democracias nada tem a ver com a violência armada organizada. O
ódio não é a antessala da violência, mas algo que a substitui. Não nos
permitimos odiar tanto porque sabemos que — pela solidez de nossas
instituições, pelo Estado de Direito ou pela ameaça ao castigo da lei — é muito
improvável que esse desprezo mútuo desemboque em violência”, diz ele.
Tomando
por base a democracia americana e a europeia, Innerarity afirma que um regime
democrático não cai necessariamente por meio de um golpe do Estado e que
eleições acirradas, agressões verbais, paralisia decisória e agressividade
retórica fazem parte do jogo político. A seu ver, o que de fato vem
desarranjando a democracia são formas mais sutis de degradação, como descontentamento
popular, negativismo dos eleitores, oportunismo dos políticos profissionais e
deslocamento dos espaços tradicionais de decisão para espaços novos — muitos
deles transterritroriais – não controlados democraticamente. Por isso,
personagens que ameaçam a vida democrática — como um Trump ou um Bolsonaro, por
ele não nominados expressamente — são mais oportunistas do que propriamente
golpistas. Se por um lado recorrem à retórica violenta para atrair atenção, por
outro não sabem nem têm condições de exercer um poder expandido ou forte no
âmbito de países dotado de um mínimo de complexidade.
Se
a debilidade da democracia liberal decorre mais do enfraquecimento de uma
cultura política baseada no sentimento de pertencimento a uma comunidade unida,
diversa e aberta do que a ameaça de políticos populistas autoritários, diz
Innerarity, sua força tende a aumentar à medida que forem construídas
instituições que não sejam demasiadamente condicionadas por aqueles que
eventualmente as dirijam. Mais precisamente, em que as regras prevaleçam sobre
o voluntarismo dos dirigentes.
Em
um período de aceleração do tempo, de deslocamento da produção jurídica para
instâncias não legislativas, de integração dos espaços nacionais pelos meios de
comunicação, de transferência da titularidade dos Legislativos para organismos
intergovernamentais, a chave de resistência democrática está na criação de
estruturas institucionais bem mais complexas do que as forjadas nos séculos XIX
e XX, que moldaram uma democracia mais simples, eficaz para a época, mas
lenta nos períodos de crise econômica, e com jurisdição limitada às fronteiras
dos Estados.
A
situação hoje é outra. Em decorrência da internacionalização da decisão
econômica, do advento de tecnologias mais integradas, de novas formas de
comunicação e de informação, da tendência da sociedade contemporânea de
subdividir em subsistemas funcionalmente diferenciados, são necessárias
instituições capazes de trabalhar com sistemas mais complexos e inteligentes —
o que não ocorria quando a democracia liberal emergiu no mundo moderno. Também
é necessário articular robotização, automatização e digitalização com
princípios de autogoverno, que constituem o núcleo normativo das estruturas
democráticas, diz o autor. Essas mudanças configurariam estruturas, processos e
regras que proporcionariam à democracia contemporânea um alto grau de
inteligência sistêmica — uma inteligência que não está nas pessoas, mas nos
componentes constitutivos de um sistema institucional mais flexível e capaz se
adaptar a mudanças e inovações.
É
isso que tornaria o regime democrático funcionalmente mais eficiente e
resistente, frente a falhas de atores individuais, fraquezas de partidos políticos
e más intenções de aventureiros populistas. Sem relativizar a importância da
autorização popular que está por trás de suas decisões, a democracia só
sobrevive se a própria inteligência do sistema institucional for capaz de
compensar a mediocridade, a inépcia e a até má fé e a maldade dos atores
políticos — conclui o autor de Una teoria de la democracia compleja –
gobernar en el siglo XXI (Barcelona, Galaxia-Gutemberg).
Em
princípio, esses cenários não são animadores. Diante do cenário da tendência à
democracia iliberal, por meio de medidas astuciosas, porém nem sempre ilegais,
e o cenário da afirmação da força de uma democracia baseada em sistemas
inteligentes, é difícil apontar qual é o mais viável. A verdade é que, quanto
mais nos enveredamos na análise de cada um deles, mais voltamos ao paradoxo
socrático da ignorância, à medida que sabemos do quanto não sabemos qual será o
destino da democracia entre nós.
*José
Eduardo Faria é Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria
Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
(Esse artigo foi originalmente publicado em Estado da Arte, revista eletrônica vinculada ao jornal O Estado de São Paulo, em 20/02/2021)
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