segunda-feira, 1 de março de 2021

Marcus André Melo* - Vacina política

- Folha de S. Paulo

A vacina contra a hiperfragmentação não pode ser cancelada

O que há em comum entre a bancada federal de Espírito Santo, Roraima, Rondônia, Rio Grande do Norte, Sergipe, Alagoas e Amapá? E de Goiás, Tocantins, Mato Grosso, e Mato Grosso do Sul, Acre, Amazonas, e Piauí?

No primeiro grupo todos os deputados provêm de partidos diferentes; a fragmentação alcançou o maior valor matematicamente possível. No segundo, a situação é marginalmente diferente: o maior partido da bancada tem dois representantes, os demais um. Sim, a hiperfragmentação política entre nós ultrapassou as raias do absurdo.

O número efetivo de partidos na Câmara Federal alcançou em 2018 o maior valor já registrado em qualquer país, 16,46. Não me refiro ao número nominal de partidos mas ao número efetivo, uma métrica que pondera os partidos pelo seu tamanho. O número nominal não importa: o Reino Unido tem 408 partidos registrados, inclusive o Church of the Militant Elvis Party; dez possuem pelo menos um representante no parlamento. Os EUA têm 61 nominais, inclusive o Marijuana Reform Party. O número efetivo no Reino Unido e nos EUA é 2,4 e 1,99, respectivamente.

Pesquisas já identificaram os fatores que explicam comparativamente a variação no número de partidos. O principal é a regra eleitoral: o voto em distritos de um só representante produz bipartidarismo; a representação proporcional, o multipartidarismo.

Outros fatores importam: a magnitude do distrito eleitoral (no Brasil, os estados); o número total de cadeiras no legislativo; cláusulas de barreira; adoção do segundo turno; o peso das eleições subnacionais; e a heterogeneidade social.

Mas há uma especificidade brasileira: a estarrecedora soma de recursos públicos distribuídos aos partidos na forma de fundo partidário, de campanha e tempo de TV. Por exemplo, o desconhecido Unidade Popular recebeu em 2020 R$ 1,2 milhão. Os partidos não precisam de votos para receber fundos e tempo de TV. (A astronômica soma para quem tem voto é outro assunto). Essa é a diferença entre o Brasil e o Reino Unido.

Fora os dois maiores partidos que detém 10% do total de cadeiras, há dez partidos médios com algo entre 5% e 7%, situação inédita no mundo, e que tem causado profundo cinismo cívico que está na base da situação em que vivemos.

O que é estarrecedor é que a terapia para mitigar o problema já havia sido aprovada na reforma de 2017, que introduziu cláusula de desempenho que tem implementação gradual, e proíbe coligações em eleições proporcionais. No entanto, surge uma mobilização na Câmara para derrubar o dispositivo.
É como se, aplicada a primeira dose da vacina antifragmentação, se buscasse impedir a aplicação das demais.

*Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

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