A
americana Anne
Applebaum, de 56 anos, é estrela indisputável da
intelectualidade conservadora. Como jornalista, foi editora de dois
tradicionais baluartes, as revistas The
Economist e The
Spectator. Mas foi como historiadora que consolidou seu
prestígio. Seus estudos sobre os gulags, as temidas prisões soviéticas, e a
fome da Ucrânia nos anos 30 renderam-lhe prêmios e expuseram os horrores do
stalinismo. Em seu novo livro, O Crepúsculo da Democracia (Record),
narra em tom pessoal um novo fenômeno: a adesão de muitos intelectuais às
ideias autoritárias de governos populistas, dos Estados Unidos à Polônia — seu
marido, Radoslaw Sikorski, é um político e ex-ministro do país europeu. Nesta
entrevista a VEJA, ela fala sobre temas como as consequências da queda de
Donald Trump, a sobrevivência dos líderes populistas na pandemia e a chamada
cultura do cancelamento.
Em O Crepúsculo da Democracia, a senhora alerta sobre a escalada do populismo e do autoritarismo no mundo. A derrota de Donald Trump não sinaliza justamente o declínio dessa onda?
É cedo para
comemorar. A eleição de Trump, em 2016, refletiu uma insatisfação latente com
muitas coisas, inclusive com a democracia e o sistema político. Apesar de sua
derrota em 2020, o desapontamento com a democracia ainda está vivo nos Estados
Unidos, na Europa e em muitos outros países com eleições livres, até mesmo no
Brasil. As ideias autoritárias se alimentam de uma insatisfação profunda de
muitas pessoas com os rumos da vida moderna e as dramáticas mudanças sociais e
demográficas das últimas décadas. Esse mal-estar não sumirá com a queda de
Trump.
Por que
a democracia liberal, que trouxe tanto progresso ao Ocidente, passou a ser
questionada?
Por
diversos motivos. Nos Estados Unidos, existe a frustração de parte da população
com as complicações para aprovar novas leis, e isso dá a sensação de que o
Congresso é inoperante. A polarização de nosso sistema político também amplia a
percepção de que o Estado não tem força. Se tudo se encontra paralisado, por
que não cogitar que uma liderança centralizada e autoritária possa fazer o que
os políticos não conseguem? Na maioria das democracias liberais, as pessoas
também passaram a achar que seus líderes, de quem esperam atitudes de mudança,
não detêm o controle do governo.
A
invasão do Capitólio por apoiadores de Trump representou um risco real à
democracia americana?
A invasão do Capitólio foi uma consequência palpável, e perigosa, da polarização política. Aquela gente falava a sério ao proclamar que desejava matar integrantes do Congresso. Eles não obtiveram êxito, felizmente, mas restaram cinco mortos ao fim do caos. Não se tratava de republicanos atacando democratas, mas de uma horda de loucos antissistema que tinham as instituições como alvo. Foi uma explosão de toda a raiva insuflada ao longo de anos de polarização nas redes sociais.
Como
restaurar os velhos dias de debate civilizado e racional?
Não
há caminho de volta ao passado. Os países democráticos terão de reinventar o
modo como se faz política. Mas é interessante notar que essa chaga da
polarização causa estragos não apenas nos Estados Unidos, mas também no Brasil,
na Polônia e nas Filipinas. Como todos esses países não comungam a mesma
cultura, fica claro que o fenômeno que une a todos nas divisões radicais são as
mudanças no ecossistema da informação — mais especificamente, a influência das
redes sociais.
“Chegou
a hora de encarar a necessidade de uma regulação das redes sociais. Não se
trata de censurar conteúdos, mas de adequar os algoritmos ao interesse público”
Como
lidar com os extremismos nas redes?
Já
chegou a hora de encarar a necessidade de uma regulação pública das redes. Não
se trata de remover ou censurar conteúdos, mas de apoiar um crescente movimento
pela adequação dos algoritmos das plataformas ao interesse público. Hoje, a
lógica das redes é dar relevância a qualquer conteúdo que traga engajamento, e
por isso viraram o paraíso das fake
news e dos discursos irracionais. Os algoritmos estimulam
os usuários a fazer coisas deprimentes que vemos hoje na internet. É preciso
inverter a lógica, dando mais relevância àquilo que nos une e à informação
confiável.
Não há
risco de um controle indesejado sobre a circulação de ideias?
É claro
que essa regulação teria de ser feita por órgãos independentes, evitando o
risco de manipulação política, como fazem governos autoritários na Rússia e na
China. Talvez seja o momento, aliás, de pensar: por que, ao lado das redes que
já existem, não pode haver serviços públicos do gênero? Taiwan criou fóruns
públicos de debate sobre problemas que galvanizam a população, e a resposta das
pessoas tem sido excelente.
Após a
invasão do Congresso americano, o Twitter baniu o ex-presidente Trump. Foi
censura?
É
uma questão dificílima. O Twitter tem regras claras sobre as condutas na
plataforma. Já fazia tempo que Trump quebrava sistematicamente as regras.
Trump, porém, redobrou suas violações e chegou a um ponto inaceitável na
invasão do Capitólio. Um modo de auferir como prevaleceram o bom senso e a
justiça é verificar o que ocorreu depois que Trump foi banido: a veiculação
de fake news sobre
fraude nas eleições americanas baixou dramaticamente. A democracia saiu
ganhando.
Como a
pandemia afeta o projeto de poder dos líderes populistas?
A
resposta depende do grau de aceitação da sociedade à aposta do governante. Nos
Estados Unidos, Trump investiu no caos e no negacionismo, e errou feio. Em
outros lugares, a pandemia serviu de desculpa para ampliar as políticas
autoritárias — foi o que fez Viktor Orbán na Hungria. Agora, os líderes
passaram a ser cobrados por sua capacidade de responder ao clamor por vacinas.
Alguns populistas, no entanto, tiram proveito do fato de que nem todas as
pessoas pensam assim — e isso se aplica ao Brasil.
Por quê?
Seria
ingênuo subestimar que parte da população vibra quando Trump ou Jair Bolsonaro
conclamam a se ignorar a pandemia e a se rebelar contra as máscaras. A mensagem
é “não ouçam os médicos, é tudo bobagem”. Se você está com medo de ficar doente
e perder o emprego, traz alívio ouvir que é só uma gripe e logo passará. É uma
fuga da realidade.
O
negacionismo, então, não é uma escolha impensada?
Longe
disso. O negacionismo pode ser popular. Ninguém quer ouvir que pode morrer, ou
que terá de passar meses trancado em casa e cancelar a festa de casamento.
Instintivamente, Trump captou o apelo disso. Como a maioria dos eleitores
americanos pensava diferente, ele acabou derrotado na eleição. Mas os
negacionistas continuam sendo uma parcela ruidosa da população. É trágico ver a
insistência de Trump e Bolsonaro no uso da cloroquina. No meio do horror das
mortes, tudo o que ofereciam às pessoas era a crendice em uma droga milagrosa.
Não é à toa que o estrago do vírus tenha sido tão forte nos Estados Unidos e no
Brasil.
Por que
as teorias conspiratórias e as fake news são tão usadas por
políticos autoritários?
As
teorias conspiratórias e a desinformação são úteis para os populistas porque
minam a fé das pessoas nas instituições, na imprensa e na sociedade civil. Elas
têm especial apelo para uma parte da população que se sente esmagada pelo
turbilhão de informações despejado pela internet. Vivemos numa era em que as
pessoas ouvem, leem e assistem a muita coisa sem saber como separar fatos de
mentiras. Elas buscam desesperadamente quem simplifique o que não lhes faz
sentido, e se tornam presas das campanhas de ódio.
Em
contraponto ao populismo de extrema direita, vemos hoje um radicalismo dos
movimentos identitários ligados à esquerda. Os extremos ideológicos se atraem?
Sem
dúvida. Estamos diante de uma espiral de extremismos: o radicalismo da direita
atiça o radicalismo na esquerda, e ambas redobram sua intolerância.
Os radicais fizeram da política um terreno de debates irreconciliáveis, em
vez de focar no essencial, as pautas que unam as pessoas.
Seus
amigos intelectuais, políticos e jornalistas na Polônia foram da euforia
pós-comunista, nos anos 1990, à radicalização odiosa em questão de vinte anos.
O que provocou a mudança?
Assim
como os Estados Unidos e o Brasil, a Polônia passou por tumultuadas mudanças
econômicas, sociológicas e nas formas de comunicação. E lá o caldo da
polarização ganhou um veneno extra: o ressentimento de intelectuais, pensadores
e jornalistas que não se sentiam aquinhoados na democracia. Muitos deixaram sua
respeitável carreira para se tornar ideólogos do governo de extrema direita do
partido Lei e Justiça. É como se os perdedores tivessem de repente sua
vingança. O que os tornava ressentidos era a ausência de reconhecimento
pelo status quo acadêmico, e o fato de estarem à margem do poder. Deixei de ser
amiga de muitos.
“O
radicalismo da direita atiça o da esquerda, e ambas redobram sua intolerância.
Os radicais fizeram da política um terreno de debates irreconciliáveis, em vez
de focar no essencial”
Pessoalmente,
foi difícil enfrentar essa radicalização?
Eu
me desapontei com muitos intelectuais que eram perfeitamente razoáveis e se
converteram em estridentes ideólogos do fundamentalismo católico que hoje
domina a Polônia — o partido Lei e Justiça praticamente eliminou qualquer
chance de as mulheres fazerem aborto legalmente e ataca a população LGBT. Há
uma ex-conhecida acadêmica que tem um filho gay e hoje, na condição de
pensadora do regime, abraça a homofobia. É melancólico ver uma mãe lutando
por ideias que farão o próprio filho ser cada vez mais discriminado na Polônia.
Não consigo entender.
A
senhora foi signatária da carta aberta dos intelectuais americanos condenando a
chamada cultura do cancelamento. Por que se engajou nisso?
Porque
é muito feio o comportamento das gangues que perseguem as pessoas na internet.
É comum se apontar o cancelamento como um fenômeno da esquerda, que ataca quem
sai da linha politicamente correta, mas o fato é que ele existe também, de
forma até mais deletéria, na direita. E é assustador constatar que a violência
on-line pode descambar para agressões reais. Nos Estados Unidos, as ameaças
radicais pró-Trump levaram um congressista crítico do ex-presidente, Adam
Kinzinger, a andar armado por temer pela própria vida.
A
senhora já foi cancelada?
Na
Polônia, fui alvo de campanhas muito ativas de difamação. A TV estatal volta e
meia propaga ataques contra mim e meu marido. Espalharam até a falácia de que
eu faria lobby contra os interesses do país no exterior. Já me incomodei, mas
aprendi a viver assim. Parei de me importar.
Publicado em VEJA de 3 de março de 2021, edição nº 2727
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