Interpretações
judiciais querem atribuir ao Coaf um papel trivial de repositórios passivo de
informações
Recente
decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) pode ter colocado em
risco a efetividade do arcabouço vigente no país de prevenção e combate à
lavagem de dinheiro (PLD), ao financiamento do terrorismo e ao financiamento da
proliferação de armas de destruição em massa.
Trata-se
da decisão, amplamente repercutida na imprensa, na qual o TRF-1 questiona a
motivação para a geração de um RIF (Relatório de Inteligência Financeira) sem
que tivesse havido algum tipo de provocação. O Tribunal põe em questão o que
teria sido a “geração espontânea” de um RIF por parte do órgão de inteligência
financeira. No mesmo julgado, o TRF-1 determina à Polícia Federal que instaure
inquérito para investigar a postura do Coaf no caso.
Embora
não se tenha todos os detalhes da referida decisão judicial, disparou-se o
alerta de que o posicionamento do Tribunal possa estar atingindo o cerne da
atividade de inteligência financeira, que é o recebimento de informações de
fontes legalmente previstas (bancos, por exemplo), a análise dessas informações
e, no caso de situações suspeitas, a produção e disseminação para as
autoridades competentes dos Relatórios de Inteligência Financeira.
Numa interpretação mais restritiva, o TRF-1 estaria determinando que o Coaf não poderia mais produzir RIFs a partir de sua própria análise, mas deveria esperar ser solicitado a fazê-lo por órgãos como o Ministério Público e o Poder Judiciário. Ora, isso seria reduzir substancialmente a capacidade do Estado brasileiro de combater a lavagem dinheiro e o financiamento do terrorismo. Entendo que pouco adiantaria ter um órgão de inteligência financeira como praticamente um mero repositório de dados, sem capacidade de iniciativa para analisar e disseminar espontaneamente informações de transações suspeitas que lhe são transmitidas por suas fontes.
Ademais,
caso materializada tal interpretação restritiva, o Brasil e suas empresas
estariam sujeitos a consequências sérias, principalmente pelo consequente
desalinhamento às diretrizes e melhores práticas internacionais que regem o
combate à lavagem de dinheiro e que estão consubstanciadas nas recomendações
emanadas do Gafi (Grupo de Ação Financeira).
A
propósito, vale transcrever a seguir trecho do documento “As Recomendações do
Gafi” disponível no site da entidade na Internet: “A Unidade de Inteligência
Financeira (UIF) deverá ser capaz de disseminar, espontaneamente ou a pedido,
as informações e os resultados de suas análises para as autoridades competentes
relevantes. Deveriam ser usados canais dedicados, seguros e protegidos para a
disseminação. Disseminação Espontânea: A UIF deverá ser capaz de disseminar as
informações e resultados de suas análises para as autoridades competentes
quando houver suspeita de lavagem de dinheiro, crimes antecedentes ou
financiamento do terrorismo”. (Nota Interpretativa da Recomendação 29)
As
consequências para um país quando não conforme com as diretrizes internacionais
de PLD podem ser muito graves. Através de um processo de avaliações mútuas, o
Gafi verifica periodicamente a aderência dos países a suas recomendações e as
jurisdições que apresentem não conformidades graves podem ter suas empresas e
instituições financeiras sofrendo restrições para operar em terceiros países, o
que pode trazer prejuízos econômicos de grande relevância. Ressalte-se que o
Brasil deve passar por esse processo de avaliação justamente agora em 2021.
Outro
aspecto da decisão do TRF-1 que suscita preocupação entre os profissionais
envolvidos nas atividades de prevenção à lavagem de dinheiro é o pedido do
Tribunal para que a Policia Federal investigue a conduta do Coaf no caso em que
teria havido “geração espontânea de um RIF”. Nesse sentido, vale lembrar que há
uma recomendação do Gafi para que as instituições financeiras, seus diretores e
funcionários sejam legalmente protegidos contra responsabilidade civil e criminal
imposta por contrato ou provisão legislativa, regulatória ou administrativa,
caso comuniquem de boa-fé suas suspeitas à UIF “mesmo que não saibam exatamente
qual é a atividade criminosa em questão e independentemente se a atividade
ilegal sob suspeita tenha realmente ocorrido”.
Por
uma questão de lógica, tal tipo de blindagem tem que se estender aos servidores
do Coaf, pois o órgão não realiza qualquer investigação. Como mencionado no
site do Coaf “a UIF brasileira segue o modelo administrativo. Nesse modelo, a
UIF é uma autoridade administrativa, central e independente, que recebe e
analisa informações recebidas do setor financeiro e de outros setores obrigados
e dá conhecimento sobre os fatos suspeitos identificados às autoridades
competentes para aplicação da lei. Assim, são tais autoridades que efetivamente
realizam as investigações”.
Seria
uma pena se todo o esforço, competência e dedicação de um grupo grande de
especialistas - tanto do setor público quanto do setor privado - no combate à
lavagem de dinheiro acabasse frustrado por interpretações judiciais que ao fim
e ao cabo atribuíssem ao Coaf um papel trivial de repositório passivo de
informações. Tomara que essa ameaça seja rapidamente superada.
*Gustavo Loyola, doutor em Economia pela EPGE/FGV, ex-presidente do Banco Central, é sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo
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