segunda-feira, 1 de março de 2021

Gustavo Loyola* - Nova ameaça ao Coaf

- Valor Econômico

Interpretações judiciais querem atribuir ao Coaf um papel trivial de repositórios passivo de informações

Recente decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) pode ter colocado em risco a efetividade do arcabouço vigente no país de prevenção e combate à lavagem de dinheiro (PLD), ao financiamento do terrorismo e ao financiamento da proliferação de armas de destruição em massa.

Trata-se da decisão, amplamente repercutida na imprensa, na qual o TRF-1 questiona a motivação para a geração de um RIF (Relatório de Inteligência Financeira) sem que tivesse havido algum tipo de provocação. O Tribunal põe em questão o que teria sido a “geração espontânea” de um RIF por parte do órgão de inteligência financeira. No mesmo julgado, o TRF-1 determina à Polícia Federal que instaure inquérito para investigar a postura do Coaf no caso.

Embora não se tenha todos os detalhes da referida decisão judicial, disparou-se o alerta de que o posicionamento do Tribunal possa estar atingindo o cerne da atividade de inteligência financeira, que é o recebimento de informações de fontes legalmente previstas (bancos, por exemplo), a análise dessas informações e, no caso de situações suspeitas, a produção e disseminação para as autoridades competentes dos Relatórios de Inteligência Financeira.

Numa interpretação mais restritiva, o TRF-1 estaria determinando que o Coaf não poderia mais produzir RIFs a partir de sua própria análise, mas deveria esperar ser solicitado a fazê-lo por órgãos como o Ministério Público e o Poder Judiciário. Ora, isso seria reduzir substancialmente a capacidade do Estado brasileiro de combater a lavagem dinheiro e o financiamento do terrorismo. Entendo que pouco adiantaria ter um órgão de inteligência financeira como praticamente um mero repositório de dados, sem capacidade de iniciativa para analisar e disseminar espontaneamente informações de transações suspeitas que lhe são transmitidas por suas fontes.

Ademais, caso materializada tal interpretação restritiva, o Brasil e suas empresas estariam sujeitos a consequências sérias, principalmente pelo consequente desalinhamento às diretrizes e melhores práticas internacionais que regem o combate à lavagem de dinheiro e que estão consubstanciadas nas recomendações emanadas do Gafi (Grupo de Ação Financeira).

A propósito, vale transcrever a seguir trecho do documento “As Recomendações do Gafi” disponível no site da entidade na Internet: “A Unidade de Inteligência Financeira (UIF) deverá ser capaz de disseminar, espontaneamente ou a pedido, as informações e os resultados de suas análises para as autoridades competentes relevantes. Deveriam ser usados canais dedicados, seguros e protegidos para a disseminação. Disseminação Espontânea: A UIF deverá ser capaz de disseminar as informações e resultados de suas análises para as autoridades competentes quando houver suspeita de lavagem de dinheiro, crimes antecedentes ou financiamento do terrorismo”. (Nota Interpretativa da Recomendação 29)

As consequências para um país quando não conforme com as diretrizes internacionais de PLD podem ser muito graves. Através de um processo de avaliações mútuas, o Gafi verifica periodicamente a aderência dos países a suas recomendações e as jurisdições que apresentem não conformidades graves podem ter suas empresas e instituições financeiras sofrendo restrições para operar em terceiros países, o que pode trazer prejuízos econômicos de grande relevância. Ressalte-se que o Brasil deve passar por esse processo de avaliação justamente agora em 2021.

Outro aspecto da decisão do TRF-1 que suscita preocupação entre os profissionais envolvidos nas atividades de prevenção à lavagem de dinheiro é o pedido do Tribunal para que a Policia Federal investigue a conduta do Coaf no caso em que teria havido “geração espontânea de um RIF”. Nesse sentido, vale lembrar que há uma recomendação do Gafi para que as instituições financeiras, seus diretores e funcionários sejam legalmente protegidos contra responsabilidade civil e criminal imposta por contrato ou provisão legislativa, regulatória ou administrativa, caso comuniquem de boa-fé suas suspeitas à UIF “mesmo que não saibam exatamente qual é a atividade criminosa em questão e independentemente se a atividade ilegal sob suspeita tenha realmente ocorrido”.

Por uma questão de lógica, tal tipo de blindagem tem que se estender aos servidores do Coaf, pois o órgão não realiza qualquer investigação. Como mencionado no site do Coaf “a UIF brasileira segue o modelo administrativo. Nesse modelo, a UIF é uma autoridade administrativa, central e independente, que recebe e analisa informações recebidas do setor financeiro e de outros setores obrigados e dá conhecimento sobre os fatos suspeitos identificados às autoridades competentes para aplicação da lei. Assim, são tais autoridades que efetivamente realizam as investigações”.

Seria uma pena se todo o esforço, competência e dedicação de um grupo grande de especialistas - tanto do setor público quanto do setor privado - no combate à lavagem de dinheiro acabasse frustrado por interpretações judiciais que ao fim e ao cabo atribuíssem ao Coaf um papel trivial de repositório passivo de informações. Tomara que essa ameaça seja rapidamente superada.

*Gustavo Loyola, doutor em Economia pela EPGE/FGV, ex-presidente do Banco Central, é sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo

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