Descaso brasileiro dos
últimos anos coloca a região na mira global
A crise climática voltou à
agenda do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Na semana passada, durante
sessão especial convocada pelo Reino Unido, país que exercia a presidência
rotativa do órgão, o primeiro-ministro Boris Johnson deu o tom: “É
absolutamente claro que a mudança do clima é uma ameaça à segurança coletiva e das
nossas nações”. Continuou: “Quer você goste ou não, é uma questão de quando,
não de se. Seu país e povo terão que lidar com os impactos de segurança da
mudança climática”.
O presidente Emmanuel
Macron fez eco. O francês reiterou que o assunto envolve paz e segurança
globais, propôs que o Conselho o considere como parte do mandato e sugeriu aos
membros que elejam um enviado especial para coordenar esforços. John Kerry, o
enviado especial sobre mudança climática do presidente Joe Biden, lembrou que o
Pentágono descreve há anos as mudanças climáticas como “multiplicador de
ameaças”. Explicou: “Alguns argumentam que não é assunto do Conselho de
Segurança da ONU. Bem, poderíamos desejar que fosse verdade”, seguiu o
ex-secretário de Estado de Barack Obama. “Enterramos nossas cabeças na areia
por nossa própria conta e risco”.
O encontro terminou sem consenso. Rússia e China, dois outros membros permanentes do Conselho de Segurança com direito a veto nas decisões, se opuseram. Seus representantes concordam que o desafio climático é ameaça importante, mas alegam que outras agências e fóruns da ONU são mais gabaritados para tratar de mudança do clima. Fazer o nexo no CSNU é forçar a barra, dizem.
O fato é que Índia, Brasil
e China nunca gostaram desta abordagem. Compreendem que secas e inundações mais
frequentes e severas, além da elevação do nível do mar, têm potencial de
exacerbar conflitos e crises humanitárias na disputa por recursos naturais escassos.
A consequência são deslocamentos populacionais e migrações, mais gente
vulnerável precisando de mais apoio. Tudo é superlativo na crise climática.
Ninguém discute que a maior ameaça contemporânea tem potencial desestabilizador
gigante, mas governos de países emergentes defendem que a relação é indireta e
querem discutir desenvolvimento. Há dois temores - um bem sutil; o outro, bem
evidente.
O contraponto sutil é que
entre os cinco membros permanentes do CSNU estão os maiores emissores de
gases-estufa do mundo. Autorizá-los a agir sobre questões climáticas poderia
isentá-los de suas próprias responsabilidades como os grandes causadores do
problema. Sob esta lente, seria algo hipócrita e bastante controverso. O outro
temor é que dar ao CSNU chancela para agir em questões ambientais pode
justificar intervenções armadas. Este ponto arrepia sucessivos governos
brasileiros. Ninguém diz com todas as letras o óbvio: coloca a Amazônia na
mira.
Abrir uma brecha que
permita ao Conselho de Segurança da ONU autorizar uma intervenção na Amazônia,
a maior floresta tropical do mundo que representa metade do território
brasileiro, é luz vermelha que acende forte no Brasil, e não é de hoje. Em
2011, quando o país ocupava um assento rotativo no CSNU, diplomatas brasileiros
discordaram da ideia de se inserir temas climáticos por ali. A resistência não
mudou.
O que mudou, contudo,
foram as altas taxas de desmatamento dos últimos anos, os incêndios na Amazônia
que o mundo inteiro viu, as constantes investidas de “passar a boiada” na
legislação ambiental, a desidratação dos órgãos de fiscalização, para ficar em
alguns tópicos que marcam os anos de governo Bolsonaro.
Em webinar promovido pelo
Centro Soberania, Clima e Desenvolvimento Sustentável do IREE Defesa e
Segurança, o cientista político Hussein Kalout, pesquisador da Universidade de
Harvard, disse que o tema ambiental tornou-se componente essencial da política
externa de vários países, e particularmente dos Estados Unidos, neste momento.
Bioeconomia, proteção da biodiversidade e desenvolvimento sustentável são
elementos de uma nova ordem geopolítica. “Mais que ambiental, O Brasil é uma
potência climática. Mas estamos perdendo um ativo que serve como projeção de
poder para os nossos interesses estratégicos. O Brasil, um ator incontornável
nestes temas, está se colocando como um ator contornável.”
“O Brasil perdeu a
capacidade da narrativa”, explicou Kalout ao Valor, “e precisa urgentemente
ter uma política internacional específica para a Amazônia. No passado, o Brasil
era um grande tema ambiental e a Amazônia era parte do Brasil. Agora a Amazônia
está ganhando peso gravitacional próprio. Está se tornando maior que o Brasil.
Este é um perigo estratégico para nós.” Por quê? “O mundo inteiro discute a
Amazônia à deriva daquilo que o Brasil pensa, constata. Kalout defende que o
Brasil “formule uma diplomacia ambiental regional a partir do prisma que sempre
norteou nossa atuação na matéria. Nós criamos uma tradição de bons atores em
defesa da floresta. Precisamos de uma geopolítica específica para a América do
Sul, coordenada e voltada ao desenvolvimento sustentável da região amazônica.”
A Amazônia é, ao mesmo tempo, vítima e algoz dos humores do clima - e é por isso que o tema que vai e volta na agenda do CSNU e interessa sobremaneira. Na reunião, Heiko Maas, ministro das Relações Exteriores da Alemanha, um dos dez países membros não-permanentes do Conselho, falou em nome de 54 nações. “A mudança do clima é a ameaça existencial dos nossos tempos”, disse. Pediu relatórios regulares do secretário-geral da ONU sobre as implicações das mudanças climáticas à segurança global, mais cooperação com a sociedade civil e atores nacionais e disse que uma resolução forte do CSNU indicaria liderança no enfrentamento da ameaça.
O britânico David Attenborough, conhecido por apresentar documentários de natureza na BBC, foi convidado a falar na sessão do CSNU. “Há pessoas no mundo que vão dizer que tudo isso é uma ‘coisa verde’ de gente que gosta de tofu e de abraçar árvores, e que não é assunto que se adapte à diplomacia e à política internacional. Eu não poderia discordar mais fortemente.”
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