segunda-feira, 29 de março de 2021

Zander Navarro* - O Brasil rural acabou?

O Sebrae promoveu recentemente um evento destinado a debater as facetas atuais acerca do desenvolvimento agrário brasileiro, mas também os desafios e tendências futuras. Em correspondência à sua missão institucional, o foco foi analisar “o destino dos empreendedores”, nesse caso os produtores rurais de menor porte econômico. As palestras estão disponíveis no endereço: https://youtu.be/maBTpNYJNSc

Embora nem sempre a economia agropecuária seja corretamente descrita em seus amplos contornos, sejam espaciais ou suas dimensões sociais e econômicas, há uma profusão de manifestações públicas que exaltam seu recente virtuosismo. É a narrativa do “agro é tudo”, repetida no horário nobre televisivo. São aplausos concentrados, contudo, exclusivamente nos focos econômico-produtivos e no intenso aprofundamento tecnológico de diversos ramos considerados dinâmicos. E não apenas no tocante à produção de grãos (soja, milho e algodão), mas igualmente o setor de carnes, os ramos da cana, laranja e do café, a fruticultura irrigada no Vale do São Francisco ou o setor de florestas plantadas – enfim, são inúmeras as regiões e os ramos produtivos hoje fortemente modernizados e dominados por uma enraizada lógica empresarial. A atual safra agrícola, contabilizado o seu valor bruto mais adiante, provavelmente alcançará um trilhão de reais (sic), pela primeira vez em nossa história rural.

Por tudo isso, a economia agropecuária se transformou em uma espetacular máquina produtora de riquezas para o Brasil – um fato empiricamente inegável. E sob esse curso tendencial, com a agricultura (e a pecuária) empresarial conquistando quase todos os ramos produtivos, é inevitável que as chances dos médios e pequenos produtores venham se estreitando rapidamente, em particular no presente século. E esse tem sido o outro ângulo dessa transformação produtiva, embora raramente discutido de forma pública adequada, em todos os seus aspectos. Estamos caminhando, em síntese, talvez rapidamente, para estruturar uma agricultura sem agricultores.     

No referido evento, fui um dos expositores e arrolo, nesse brevíssimo comentário, alguns dos argumentos apresentados naquela ocasião. Inicialmente, submeti a “tese geral” que orienta a leitura da realidade da produção agropecuária e seus determinantes. Qual seja: sugerir que, no último meio século, o Brasil rural vem experimentando uma profunda e radical transformação histórico-estrutural. Trata-se de uma transição de um antigo padrão bimodal para um novo e emergente modelo produtivo que é (ou logo será) unimodal, ancorado incontrastavelmente na hegemonia da agricultura empresarial de larga escala. A antiga segmentação dual entre grandes proprietários de terra dedicados à exportação e, em outro subsetor, os médios e pequenos abastecendo o mercado interno, como prevalecia até os anos oitenta, está deixando de existir. É uma passagem ainda inconclusa, mas sem retorno, e sob a qual os médios e pequenos produtores estão sendo encurralados como agentes econômicos e, gradualmente, também como cidadãos moradores das regiões rurais.

São inúmeras as evidências desta transição que anuncia um “outro rural”. A mais categórica delas é a chocante concentração da riqueza no campo, pois apenas 2% dos estabelecimentos rurais se apropriam de 71% do valor bruto total produzido, segundo o Censo 2017 (no censo anterior a proporção era 63%). Mas não apenas isso: registre-se como ilustração, por exemplo, que o feijão, antes tipicamente um “cultivo de pobre”, é atualmente produzido majoritariamente por produtores de corte empresarial e 14 dos vinte municípios maiores produtores, em valor, estão situados no Centro-Oeste, deixando para trás a pequena produção do passado. O processo de expansão do capitalismo agrário, adicionalmente, quase eliminou as formas de produção típicas de uma economia antiga, como os posseiros, ocupantes, arrendatários pobres ou parceiros: eram 36% do total das unidades de produção em 1970, mas hoje totalizam apenas 7,5%, espalhados nas regiões rurais mais remotas.

Com esta radical mudança, vão também diminuindo os grandes proprietários de terra que seguiam a lógica puramente rentista do passado, centrada no tamanho da propriedade. Em nossos dias, apenas a produtividade garante a sobrevivência na atividade (por isso, a palavra “latifundiário” quase desapareceu). Ou seja, a “tecnologia”, em termos mais genéricos, passou a ser a única condutora da atividade. E esta, para produzir resultados econômicos satisfatórios, precisa ser adotada na forma de arranjos (várias tecnologias), significando que é um caminho apenas para poucos, em função de seu custo total. Em consequência, a intensificação tecnológica, de fato, é a principal promotora da desigualdade social no campo brasileiro, pois a vasta maioria dos produtores rurais não consegue o acesso a tais arranjos, para manter-se competitivo.

Talvez um caso emblemático e revelador seja o algodão. Antes, no Nordeste rural, eram aproximadamente duas milhões de pessoas ocupadas com esse cultivo, usando 4 milhões de hectares. Atualmente, são 1,7 milhão de hectares, mas, sobretudo, no Centro-Oeste e nas mãos de alguns poucos gigantescos produtores empresariais, enquanto a produtividade multiplicou-se por mais de dez vezes. O Brasil, que era importador de algodão, passou a responder por um quinto das exportações mundiais. Importante: com a elevação da produtividade, foram poupados de utilização 13 milhões de hectares nesta mudança, com profundas implicações sociais (aprofundando a pobreza rural no Nordeste), mas virtuosos efeitos econômicos e ambientais.

Examinando-se a estrutura da economia da produção agropecuária vai emergindo um fato dramático. Entre 3,5-4,5 milhões de estabelecimentos rurais estão ameaçados de desaparecimento, nos próximos anos. São os médios e pequenos produtores que não conseguem manter-se nesta corrida tecnológica e vão perdendo seus mercados de venda, sobretudo os locais e regionais. O caso mais assustador ocorre no semiárido nordestino. Ocupando 12% do território brasileiro, na região moram 65% das famílias consideradas pobres, as quais atualmente encontram-se, cada vez mais, encurraladas, sem opções produtivas e onde incidem os efeitos mais danosos das mudanças climáticas.

As ameaças sobre a permanência na atividade agrícola das famílias rurais moradoras nos médios e pequenos estabelecimentos rurais formam uma longa lista. Incidem a baixíssima escolaridade, o envelhecimento dos responsáveis, a migração dos mais jovens, a perda de mercados, mudanças demográficas (as famílias se tornaram menores), as diferenças tecnológicas e a produtividade menor ou a crescente complexidade das atividades agropecuárias.  Em suma, a precariedade geral da vida social nas regiões rurais e, assim, o incentivo à migração e à desistência de permanecer no campo.

O que fazer? São vários os cenários que poderiam ser discutidos mais amplamente. Mantida a atual política, por exemplo, nada de mais substantivo acontecerá e o “modelo unimodal” irá consolidar-se definitivamente. Mas há outras possibilidades. Para o Nordeste rural, especialmente no semiárido, a única saída parece ser instituir a “renda mínima universal”, uma proposta que vai lentamente sendo aceita. Eliminaria pouco mais da metade da pobreza rural, com um só gesto de política governamental. Por outro lado, uma parte daquele imenso conjunto em torno de 4 milhões de propriedades, antes citado, mantém ainda formas de integração mercantil e poderiam ser “salvos” das tendências mais incontornáveis da expansão do capitalismo agrário globalizado que ora nos caracteriza. Mas é preciso urgência e rápida implementação das ações, pois são numerosas as evidências sobre a consolidação do “caminho único” referido nas regiões rurais.

Ponderados os argumentos aqui brevemente submetidos, o Brasil rural acabou? Como “espaço social” (o rural-agrário), provavelmente está definhando e fadado a desaparecer em algum tempo – relativamente, ou seja, quando comparado com meio século atrás e às regiões rurais antes populosas. Ficarão imensas manchas vazias de vida e interação humanas, não obstante mantidas como pujantes regiões de produção de mercadorias agrícolas ou pecuárias. Apenas algumas partes do país rural mostrarão alguma resiliência social, como subpartes dos três estados sulistas, às quais se somarão outras esparsas regiões, aqui e acolá, nas quais famílias rurais persistirão, apelando a possibilidades produtivas recentes, embora limitadas, do turismo rural aos derivados processados e ofertados em franjas mercantis constituídas por uma demanda de rendas mais altas.

No geral, contudo, em vinte anos, se tanto, o Brasil rural caminhará para manter uma população ocupada em atividades agrícolas apenas ligeiramente superior ao caso norte-americano, provavelmente em torno de 4-5% da população total ocupada – embora uma proporção maior de moradores rurais, mas sem atividades agrícolas.

Como “espaço produtivo e econômico” (o rural-agrícola), no entanto, o país está condenado ao sucesso, se tornando o maior produtor de alimentos do mundo. No campo, a riqueza se concentrará de forma ainda mais acelerada, nas mãos de produtores rurais inovadores, responsáveis pela produção em larga escala da quase totalidade dos produtos agrícolas e pecuários destinados ao mercado interno e às exportações. Será um ambiente produtivo ainda mais globalizado e conduzido pela excelência tecnológica, nas mãos de um empresariado rural proativo e moderno. 

Como fator mais destacado, a sociedade se beneficiará de alimentos saudáveis e baratos e as cadeias produtivas crescerão, gerando empregos urbanos e mais renda. Mas a desigualdade no campo se aprofundará e a “questão social”, que marcou tão profundamente a história rural brasileira, migrará do campo para as cidades. O secular capítulo da “questão agrária” em nossa história social e política terá sido concluído.   

*Zander Navarro, sociólogo, pesquisador da Embrapa (Brasília, DF)

2 comentários:

Fernando Carvalho disse...

AGRO é TUDO MENOS REFORMA AGRÁRIA!!!

Claudio Serricchio disse...

Rumamos para um "país" sem sociedade?
Uma imensa plataforma territorial para a produção de "comodities" para exportação, cercada por sub-empregados, desempregados, desalentados e famintos?