Por Isadora Peron / Valor Econômico
BRASÍLIA
- Após protagonizar a maior derrota já imposta à Lava-Jato, o
ministro Gilmar Mendes evita sacramentar o fim da operação que desvendou o
escândalo de corrupção na Petrobras. Em entrevista ao Valor, ele
diz que a suspeição do ex-juiz Sergio Moro no processo do tríplex do Guarujá
deve se estender aos demais casos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
mas que isso não é automático para os outros réus.
Gilmar evita críticas diretas ao ex-magistrado e defende que uma
investigação não pode se transformar em um “vale tudo”. “Tem que ter regras, do
contrário você paga o preço de eventual nulificação de todo o trabalho. Esse é
sempre um risco de se fazer um trabalho malfeito”, diz.
Gilmar afirma ainda que o plenário deve chancelar a decisão do ministro Edson
Fachin, que anulou as condenações impostas a Lula pela 13ª Vara Federal de
Curitiba. O julgamento está marcado para o dia 14 de abril. No entanto, diz não
acreditar que a Corte derrube a decisão sobre a parcialidade de Moro, que foi
tomada no âmbito da Segunda Turma, colegiado que reúne cinco dos 11 ministros.
O ministro, que chegou
a pedir a demissão do agora ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, adota um tom
conciliador e diz esperar que haja, enfim, uma “união nacional” para resolver o
problema da pandemia. Ele afirma ainda que não é momento para discutir o
impeachment do presidente Jair Bolsonaro e que não acredita em ruptura
institucional em 2022 mesmo que Lula dispute - e vença - as eleições.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: O ministro Fachin disse temer
que a suspeição de Moro leve à anulação de toda a Lava-Jato. O senhor concorda?
Gilmar Mendes: Eu
não vejo dessa maneira. Entendo que a questão está limitada aos processos do
ex-presidente Lula. Nós só julgamos na Turma aquela primeira condenação, do
tríplex. Muito provavelmente isso pode ser estendido aos outros processos do
ex-presidente, mas essa é uma questão que tem que ser analisada em cada caso.
Eu não vejo essa abrangência vislumbrada pelo ministro Fachin. Por outro lado,
a questão da competência da Vara de Curitiba pode ter uma abrangência bastante
vasta, mas isso tudo terá que ser considerado a seu tempo.
Valor: A decisão de Fachin de anular
as condenações impostas a Lula vai receber o aval do plenário?
Gilmar: Imagino que sim, porque é o relator que está encaminhando essa orientação, é ele quem se debruça sobre os processos. Além disso, há paradigmas no plenário de que só diziam respeito à Vara de Curitiba os processos que tivessem a ver com corrupção na Petrobras. Por isso o pleno, e também a Turma, tem tirado processos e afirmado a incompetência da 13ª Vara.
Valor: O plenário pode derrubar a decisão da Turma sobre a suspeição de Moro, caso considere que o habeas corpus perdeu o objeto?
Gilmar: Eu
creio que não. Não vislumbro que isso vá ocorrer.
Valor: A suspeição de Moro para os
outros casos em que Lula foi condenado é automática?
Gilmar: Isso tem que ser examinado em cada caso. O nosso foco todo foi a primeira condenação.
Valor: Como o seu voto foi o vencedor
no caso de Lula, o senhor vai ser o relator dos pedidos de suspeição para todos
os casos em que o Moro atuou na Lava-Jato?
Gilmar: Vamos
aguardar. Vamos publicar o acórdão e depois fazer os encaminhamentos.
Valor: E para os casos de Lula?
Gilmar: Ah,
sim, se houver pedidos de extensão.
Valor: A mudança de voto da ministra
Cármen Lúcia surpreendeu?
Gilmar: Tem
acontecido de a ministra Cármen nos acompanhar. Às vezes, Fachin fica isolado
e, às vezes, temos até unanimidade [na Segunda Turma].
Valor: O senhor conversou com ela
sobre esse caso?
Gilmar: Não, não tive nenhuma conversa. Ela já vinha dando sinais que estava preocupada com essa questão do devido processo legal. Você deve se lembrar daquela questão da ordem dos delatados e delatores, ela votou no sentido de que aquilo era uma cerceação do contraditório e da ampla defesa. Há vários exemplos nesse sentido, como o direito de acesso às mensagens da Operação Spoofing.
Valor: O senhor fez duras críticas ao voto do ministro Kassio Nunes Marques na terça-feira. Conversaram depois do julgamento?
Gilmar: Faz
parte do debate, é o modo de enfatizar os argumentos, algo absolutamente
normal.
Valor: Durante o julgamento, o senhor
defendeu que é preciso haver mudanças no Judiciário. O que sugere?
Gilmar: Nós
precisamos aprofundar e discutir a figura do juiz de garantia. Nós também
precisamos melhorar a atividade de corregedoria. Isso vale tanto para a Justiça
quanto para o Ministério Público. A investigação penal não é um vale tudo. Tem
que ter regras, do contrário, você paga o preço de eventual nulificação de todo
o trabalho. Esse é sempre um risco de se fazer um trabalho malfeito, do ponto
de vista do devido processo legal, e depois então ter o comprometimento de todo
o trabalho que foi feito. E ali, pelo que se viu, em Curitiba, nós tínhamos
esse consórcio entre juiz e procurador. Essa parceria, que era muito
confortável, era um desequilíbrio do jogo processual. Obviamente, isso nada tem
a ver com o processo dos países democráticos, nada tem a ver com o nosso
sistema. Combater a corrupção, sim. Combater o crime, sim. Mas você não combate
o crime cometendo crime.
Valor: Esse suposto consórcio entre
juiz e acusação ficou mais claro depois da Operação Spoofing?
Gilmar: O
que vem sendo revelado, ilumina fortemente isso.
Valor: O STF terá que discutir a
validade de mensagens obtidas pelos “hackers”?
Gilmar: Não
vejo como o Tribunal se posicionar abstratamente sobre isso, certamente terá
que ser a partir do uso que alguém faça em dado processo.
Valor: A defesa de Lula tem analisado
o conteúdo das mensagens.
Gilmar: A Turma decidiu que ele poderia ter acesso, mas ele não usou [no HC que pediu a suspeição de Moro]. Ao contrário até do que foi dito na terça-feira, eles não juntaram aos autos. Faz parte de uma informação de caráter histórico, de caráter político, de valor geral. Agora, se vier a ser juntado, pode se discutir se uma prova ilícita, que não serve para condenar ninguém, pode servir eventualmente para inocentar ou absolver.
Valor: Então a discussão será caso a caso?
Gilmar: Até
agora, nós não dissemos nada sobre a validade ou não da prova, simplesmente
estava se garantindo o acesso [a Lula]. Há muitas questões, que podem ser
desdobradas. Uma coisa que me desperta sempre bastante curiosidade é que ali se
fala muito de cooperação com a Receita, uma cooperação informal. A partir
dessas informações, pode se chegar a uma investigação, feita pela própria
Receita, sobre se houve ou não esse tipo de investigação ilegal, com a
verificação dos dados, dos computadores, de quem acessou etc.
Valor: E a figura do ex-juiz Sergio
Moro, como fica? Ele já foi visto como um herói nacional.
Gilmar: Vamos
aguardar. Tem que se dar tempo ao tempo. Tem que esperar, inclusive, que todo
esse quadro fique muito mais claro. Nós ainda não terminamos todo esse
processo.
Valor: O que achou da decisão do
procurador-geral da República, Augusto Aras, de acabar com a força-tarefa da
Lava-Jato em Curitiba?
Gilmar: Ao
longo desse tempo, nós vimos algumas dificuldades que mostram que, de alguma
forma, o rabo passou a abanar o cachorro, e não o cachorro a abanar o rabo.
Exemplo: a Petrobras entregou um cheque de R$ 2,5 bilhões à força-tarefa de
Curitiba e ali estava se formando uma fundação, que, aparentemente, seria usada
para combater a corrupção, e que contrataria os próprios procuradores. Tudo
muito estranho, muito obscuro. E a procuradora-geral [Raquel Dodge] não
conseguiu cancelar essa fundação, ela teve que vir ao Supremo. Esse é um fato
que mostra bem que essas entidades tinham se deslocado da própria estrutura.
Veja, a força-tarefa havia se tornado uma entidade, que se descolava da própria
Procuradoria. Talvez foi essa perspectiva que o procurador-geral [Aras]
percebeu, que havia um ovo da serpente nessas forças-tarefas.
Valor: Na semana passada, o presidente nomeou outro ministro da Saúde e criou um gabinete de crise para combater a pandemia. Dá tempo de corrigir os rumos?
Gilmar: Eu espero que sim e faço todos os votos para que o novo ministro Marcelo Queiroga encontre aí os caminhos e tenha autonomia para compor uma equipe técnica. Faz exatamente um ano que eu estive com o presidente da República, pela primeira vez, para conversar sobre isso. Naquela época, levei a ele proposta do decreto do governo Fernando Henrique Cardoso que instituiu aquela comissão que tratava do racionamento de energia. E eu dizia ao presidente, nessa conversa, que o tema que nós lidamos lá atrás, que tinha sido o apagão, em 2001, 2002, era muito mais simples, do que o tema de agora. Porque lá nós tratávamos de eletricidade, e a União era competente para legislar sobre esse tema. Aqui não, o tema da saúde é um tema que tem uma competência compartilhada, entre União, Estados e municípios. Portanto, essa coordenação também teria que envolver, de alguma forma, representantes de Estados e municípios.
Valor: Mas o presidente tem usado a
decisão do STF, de que União, Estados e municípios têm competência concorrente
na pandemia, para se eximir da responsabilidade.
Gilmar: O
STF jamais disse que a União deveria ficar ausente.
Valor: O inquérito aberto contra Pazuello
foi enviado à primeira instância. Que consequências essa investigação pode ter?
Gilmar: Vamos
aguardar. Isso é uma questão que tem muitas conotações. Eu sei que ele estaria
sendo investigado por conta daqueles eventos em Manaus, pela falta de oxigênio,
aí depende dos dados fáticos que forem trazidos e descobertos no inquérito.
Valor: A gestão de Pazuello, que é
general da ativa, macula a imagem das Forças Armadas? No ano passado, o senhor
chegou a dizer que Exército se associou a um “genocídio”.
Gilmar: Eu tenho a impressão que, neste momento, nós devemos envidar todos os esforços para obtermos uma saída para essa crise. Não vejo antimonia entre saúde e economia. Isso precisa ser resolvido. Na semana passada, eu encorajei o ministro Luiz Fux a participar dessa reunião [do comitê de enfrentamento à pandemia criado por Bolsonaro] e acho que devemos dar toda a contribuição. Acho que devemos realmente pensar em uma união nacional para resolvermos esse problema. E depois, obviamente, a responsabilidade de cada um na história vai ficar devidamente caracterizada, certamente alguns agiram de uma forma, outros, de outra, e isto é uma questão que daqui a pouco a gente vai saber.
Valor: Esta segunda onda não poderia ter sido evitada?
Gilmar: Ninguém
esperava que teríamos essa segunda onda com tanta força, e as pessoas, que
ainda não se recuperaram do primeiro trauma, estão aí às voltas com o segundo,
que inclusive é mais chocante, se olharmos o número de óbitos por dia. Nós não
podemos nos dar ao luxo de apostar em divisões. Acho que devemos fazer todo o
esforço no sentido de buscarmos uma unificação. Há quantos anos o Brasil não
tem uma guerra que afetasse o seu território de maneira tão direta? Nós estamos
vivendo um estado de guerra, uma guerra silenciosa, mas mortífera. Estamos
falando de 300 mil mortos, da destruição de uma parte significativa da
economia. Então nós temos que ser criativos, esse é o desafio.
Valor: Há uma preocupação com decisões
de juízes de primeira instância, que trazem insegurança jurídica para o dia a
dia do combate à pandemia. O que pode ser feito?
Gilmar: É
natural que haja recursos dessas decisões, os tribunais têm a noção da
responsabilidade, e acho que é possível se encontrar uma uniformidade em
relação a isso. É fundamental que o governo traga elementos, informações, para
que essas medidas de contracautela, possam avançar. Mas também não se pode
impedir que as pessoas recorram ao Judiciário, esse é um direito fundamental.
Esse é um dos incômodos, mas também da grandeza da democracia.
Valor: Há espaço para debater o
impeachment do presidente?
Gilmar: De
novo, eu vejo a necessidade de que tentemos construir o consenso. Não vejo
como, nesse ambiente, de crise tão profunda, possamos aprofundá-la com novos
dissensos, disputas, e coisas do tipo. Dos quatro presidentes eleitos, Fernando
Henrique e Lula foram os únicos que terminaram os mandatos. Eu tenho discutido
se não seria o momento de melhorarmos o sistema eleitoral, se nós não
poderíamos, com a redução dessa base partidária imensa, pensar em um
semipresidencialismo, onde o presidente teria um papel, seria eleito, mas a
função governativa poderia ser de um primeiro-ministro.
Valor: Há
um temor que o resultado das eleições de 2022 seja muito questionado. Há risco
de ruptura institucional ou de ocorrer algo parecido com o que aconteceu nos
EUA, com a invasão do Capitólio?
Gilmar: Cada
momento histórico tem que ser analisado com cuidado, e nós temos que estar
sempre atentos. Nós vimos que aquele inquérito das “fake news”, e depois o
inquérito dos atos antidemocráticos, eles contribuíram para uma certa
pacificação, separando o que era direito de manifestação de atos que deveriam
ser reprimidos. Desde então, esse tipo de agressão às instituições cessou. Acho
que essa foi uma contribuição que o Tribunal deu para essa pacificação. Eu
tenho a expectativa que as coisas vão fluir, o próprio movimento que o
presidente fez, de buscar uma base mais sólida, mostra que nós estamos diante
daquilo que se chamou de um presidencialismo de coalizão, que se formou em
outros momentos no Brasil, uma base ampla para permitir a aprovação de
reformas, a sustentação do governo.
Valor: Mas Bolsonaro questionou até o
resultado da eleição de 2018, da qual foi vencedor.
Gilmar: Os
questionamentos em relação à Justiça Eleitoral me parecem, em linha de
princípio, muito panfletário. Até hoje nós não tivemos nenhuma prova de
fraudes. O próprio PSDB pediu uma recontagem [em 2014], mas o candidato à
Presidência do PSDB [Aécio Neves], que foi excelentemente bem votado em todo o
Brasil, perdeu em Minas, que era seu Estado de origem. Ao fim e ao cabo, foi
mais um problema político, do que da urna eletrônica, que acaba se tornando um
bom bode expiatório.
Valor: Nas eleições do ano passado,
houve um ataque “hacker” ao sistema do TSE. Isso preocupa?
Gilmar: Com
certeza, mas, até aqui, o sistema tem se provado resiliente a esse tipo de
ataque. A urna é isolada e o sistema é completamente verificável.
Valor: Como
o senhor vê a candidatura do ex-presidente Lula? As Forças Armadas enviaram
diversos recados contra o PT nos últimos anos.
Gilmar: O
PT pode ter tido vários problemas administrativos, mas não consta que tenha
causado incômodo ou conflito no âmbito das Forças Armadas. Houve um esforço
muito grande do governo Lula de fortalecimento das Forças Armadas, com a compra
de equipamentos. Não me parece que haja razão para preocupação de que vamos ter
crise institucional em relação a isso.
Valor: Existe espaço para uma terceira
via em 2022?
Gilmar: Eu
estou sendo repetitivo, mas acho que temos que concentrar todas as nossas
energias agora para resolvermos esta crise. Nós temos que pensar num tipo de
assistência social, de ajuda para as pessoas, temos que pensar de forma
holística, de forma completa. Esse desafio é tão grande que isso, por si só,
consumiria toda a nossa força e a nossa inteligência. Então, eu acredito que
devemos reduzir nossos potenciais conflitos, e essas disputas políticas elas
incutem conflitos inevitavelmente, para que a gente possa, até o fim do ano,
ter esse problema, se não totalmente resolvido, equacionado e aí sim, no ano
que vem, vamos discutir candidaturas e alternativas.
Valor: Quando pretende se manifestar
sobre as ações que questionam a Lei de Segurança Nacional?
Gilmar: Por
enquanto, estou pedindo informações, porque se trata de um tema muito
relevante. Não é possível simplesmente dizer em uma decisão liminar que a lei
não foi recebida pela Constituição de 1988, depois de tantos anos de vigência.
Então temos que agir com cautela. E, claro, que tem que ser uma decisão do
colegiado. Por isso não se pode precipitar, embora haja um certo clamor público
hoje contra a lei, porque seria resquício de um regime autoritário.
Valor: Mas há algum prazo?
Gilmar: Nem
tão devagar, nem tão depressa, para que de fato se faça esse exame. Eu acho que
esse debate é útil também para estimular o Congresso. Há várias propostas lá e
eu acho que o ideal, neste momento, seria que o Congresso se debruçasse sobre
essa questão e tirasse uma conclusão, uma nova lei.
Valor: E
o processo que questiona o foro do senador Flávio Bolsonaro no caso das
“rachadinhas”, quando será submetido ao colegiado?
Gilmar: Daqui
a pouco, certamente, vai ser pautado, estamos aguardando.
Valor: Como está a relação com o
presidente do STF, Luiz Fux?
Gilmar: Temos conversado. Todo mundo que passa pela presidência tem que saber, na verdade, que ele não é chefe de nenhum ministro, ele é um coordenador de iguais. Claro, que tem um protagonismo de representação pelo Tribunal, mas o Tribunal fala pela sua maioria, e isso precisa ser entendido.
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