segunda-feira, 29 de março de 2021

Ana Paula Vescovi* - Desancorados

- Valor Econômico

A regra do teto, da forma como vem sendo conduzida, deixa de assegurar a sustentabilidade da dívida pública

Mudanças recentes na conjuntura global, agravamento da pandemia e a evolução do quadro político-institucional no Brasil têm colocado nosso cenário num limiar perigoso para a sustentabilidade da dívida pública. As recentes matérias aprovadas no Congresso, alheias a esse quadro, aumentaram a distância para uma solução estrutural.

O orçamento de 2021 demonstra esse conflito: diante da insuficiência de espaço para mais despesas discricionárias (emendas parlamentares) dentro do teto de gastos, decidiu-se pelo corte artificial de R$ 26 bilhões em despesas obrigatórias, sem o devido respaldo técnico ou aprovação legal prévia, além da não correção da subestimativa das despesas no total de R$ 17,6 bilhões em relação à proposta orçamentária inicial. A correção terá que ocorrer mediante contingenciamentos, o que sempre traz fricções no relacionamento entre os ministérios, com o Congresso e também com outros Poderes, além de deixar a descoberto o financiamento do custeio administrativo, em alguns casos.

A recente aprovação da Emenda Constitucional Fiscal (PEC emergencial), adiada por dois anos, não permite afastar a percepção de riscos, por não garantir uma rota segura para a consolidação fiscal. A medida sequer compensa - até 2026, fim da primeira fase do Teto de gastos - os gastos temporários com a pandemia em 2021. Houve avanços teóricos, pois, na sua maioria, dependem de leis posteriores ou condições ainda não observáveis.

Foram estabelecidos mecanismos tanto para redução de despesas obrigatórias dos entes subnacionais quanto para melhora da gestão de caixa; diretrizes para redução de gastos tributários; e o cancelamento de medidas que implicavam riscos fiscais para a União. Foi estabelecida nova disciplina para calamidade pública e gatilhos para serem acionados no caso de descumprimento do Teto de gastos. A atual economia política de crise, contudo, não parece favorável a tais implementações, o que reduz sobremaneira os possíveis impactos positivos.

Por outro lado, medidas efetivas para a contenção de despesas obrigatórias parecem agora inviáveis, pois já foram testadas e afastadas pelas lideranças políticas, dada a impossibilidade de se obter votos necessários. Estas seriam fundamentais para reduzir a expansão das despesas primárias de 4% ao ano em média nos próximos 10 anos para, ao menos, algo próximo ao crescimento do PIB potencial (em cerca de 1,8% ao ano).

Do lado dos mercados, as oscilações sugerem ausência de estratégia crível para equacionar uma pandemia que se agrava, acirrando ainda mais a crise fiscal mediante pressões por mais gastos. A taxa de câmbio tem oscilado entre R$ 4,30 e R$ 5,87 por dólar desde o início da pandemia, com aumento dos prêmios de risco na curva de juros nominais de 10 anos, de 2% para cerca de 4,5% (similar a quando da perda do grau de investimento). O real se depreciou, mesmo após vendas à vista de reservas pelo Banco Central (US$ 31 bilhões). Se tivesse acompanhado a média das moedas de países emergentes, a taxa de câmbio estaria em 4,50 por dólar.

O aumento do risco ocorre junto à expectativa de forte recuperação da economia global no segundo semestre, impulsionada pelo avanço da vacinação. Persistirá, assim, a pressão sobre preços de commodities e, mediante quebra nas cadeias globais de suprimentos, a reflação global será mais rápida que o inicialmente esperado, o que já pressiona as taxas de juros internacionais. A direção do vento mudou, rapidamente.

Nem a alta das commodities conseguiu conter a depreciação do real, que tem concorrido para amplificar a disseminação do choque de preços do final do ano passado. Assim, as expectativas de inflação no Brasil têm andado aos saltos, já superando o centro da meta em 2021 (fomos para 5%; meta é 3,75%) e 2022 (fomos para 3,7%; meta é 3,5%). Numa convergência arriscada, a inflação deve atingir 8,1% em julho para depois iniciar o processo de queda gradual, voltando ao centro da meta (3,25%) no segundo semestre de 2023.

Neste processo, o reajuste do espaço fiscal no Teto de gastos será maior, amplificando despesas e viabilizando seu cumprimento até 2025. Se a convergência da inflação for ainda mais gradual do que esperamos, o teto poderá se viabilizar até 2026, não por ajuste nas despesas, mas por mais inflação. Contudo, iniciou-se a reação da política monetária, para assegurar a convergência das expectativas de inflação. Estimamos que a Selic alcance 7% ao ano em 2023 (5,5% ao ano em 2021), com a normalização do ciclo em duas etapas.

Pelo lado fiscal, isso traz custos mais altos para o financiamento de uma dívida pública maior (de 74% do PIB em 2019 para cerca de 100% do PIB em 2027, se houver disciplina fiscal) e com metade de seus vencimentos em até 2,5 anos. Com mais de 2/3 da dívida ligada à Selic, a virtual economia no pagamento de juros da dívida desde 2016 poderá ser mais do que revertida, pois cada elevação dos juros incidirá sobre um volume de vencimentos significativamente maior. Se o cumprimento de um teto mais folgado, com exceções, tende a empurrar o alcance de superávits primários capazes de estabilizar a dívida pública para não antes de 2030, a normalização da taxa Selic irá aumentar desde já a conta de juros, que poderá voltar para cerca de 7% do PIB, patamar observado no biênio 2015-2016.

Embora necessária, a regra do teto, da forma como vem sendo conduzida, deixa de assegurar a sustentabilidade da dívida pública. Nossas estimativas sugerem que, se o risco fiscal não for enfrentado nos próximos dois anos, uma Selic acima de 7% já seria condição suficiente para uma dívida crescente e para a dominância fiscal.

Sem um sinal contundente do compromisso com o equilíbrio fiscal, será incerta a trajetória da dívida pública e o seu financiamento futuro, o qual poderá ocorrer por meio de mais impostos, mais inflação, menos crescimento, ou por uma combinação destes. À medida que não ancoramos a perspectiva fiscal, o tamanho do esforço requerido passa a ser maior e, ainda, perde-se a oportunidade de realizá-lo de forma gradual.

Embora diga respeito ao futuro, trata-se de um risco crescente a contaminar expectativas, afastar investimentos, desorganizar e deprimir a economia, desde já.

*Ana Paula Vescovi é economista-chefe do Santander Brasil

 

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