Pode
dar certo um governo que se caracteriza pela falta de atitudes racionais?
O
cenário nacional é de tempestade perfeita: descontrole fiscal, baixo
crescimento, aumento da inflação, alta dos juros, aproximadamente 14 milhões de
desempregados, sem falar nos subocupados, no medo generalizado da covid-19 e de
uma cifra de mortes de mais de 300 mil pessoas, em crescimento acelerado. Para
coroar o quadro, um presidente descontrolado e irresponsável, que nem ideia tem
do abismo em que estamos entrando. E como desgraça pouco é bobagem, a
alternativa política que se está desenhando, graças ao Supremo Tribunal, é o
retorno de Lula à cena política.
A dificuldade de compreensão do presidente Bolsonaro reside em que seu comportamento, suas ações e declarações não se orientam pela normalidade, pela racionalidade que julgaríamos comum em atitudes políticas. Ele se pauta pela irracionalidade, pela destruição e pela morte. Sua previsibilidade só se dá se seguirmos esses critérios, e não os da razão, do equacionamento da violência (ataques e agressões), da vida. Ele tem uma tendência incontida, diria incontrolável, a seguir comportamentos destruidores, até de acordos por ele mesmo celebrados, ainda que este rompimento lhe seja prejudicial em médio e longo prazos.
Sua
estrutura psicológica se organiza em torno de seu núcleo familiar, a saber,
seus filhos, que lhe conferem apoio e união, sempre e quando, evidentemente,
seja reconhecido como o pai e o mestre. Sua coesão interna na destruição e na
morte está baseada na consideração do outro, qualquer que seja, como estranho
e, por via de consequência, como um inimigo potencial, seja ele fático ou
imaginário. Isso se traduz igualmente pela instabilidade na consideração dos
“amigos”, sempre provisórios e transitórios, tratados com desconfiança. Foram
vários os seus “amigos” que passaram a ser “inimigos”. Eis o que o faz sempre
privilegiar os filhos, por mais que eles possam estar emaranhados em ilícitos
ou simples idiotices, que terminam tendo repercussão nacional.
Outra
versão de seu comportamento irracional consiste em seu completo desprezo pelo
outro, em seu sentido genérico, aplicável não apenas aos de seu círculo
político, mas aos brasileiros em geral. Sempre tratou as vítimas da pandemia
sem nenhuma compaixão, utilizando a “ironia” como se fosse uma gracinha. Seus
impropérios foram múltiplos. As pessoas adoecem, sofrem e morrem sem uma
palavra sequer de apoio do representante máximo do País. Até hoje não visitou
nenhum hospital, não viu a morte com os próprios olhos, restringiu-se ao seu
gozo distante. Um presidente normal mostraria sentimentos morais, exibiria
compaixão, emprestaria palavras de apoio e solidariedade.
Logo,
ao bem público é reservado uma posição completamente secundária, pois o mais
importante consiste na proteção da família e em sua permanência no poder,
apostando na eleição e flertando com o desrespeito à ordem institucional. O
presidente e sua família agarram-se de todas as maneiras à preservação dos seus
interesses e à conservação de sua coesão psicológica. Sua única política
conhecida é a do ataque, por mais, reitero, que isso possa ser-lhes prejudicial
em longo prazo. A satisfação é tirada do projeto imediato, de pequenas
conquistas e do aplauso grotesco de seus apoiadores fanatizados. Não entra em
linha de consideração o que é melhor para o País, deixando situação econômica e
social se desagregar cada vez mais. O projeto, vendido nas eleições, de uma
pauta liberal já está completamente “vendido”, não mais corresponde aos seus
interesses familiares. Foi apenas uma encenação eleitoral.
O
caso mais escandaloso dessa política da morte é o tratamento dado à pandemia.
As cenas são aterradoras. O tratamento precoce proposto, desautorizado em todo
o mundo, não defendido por nenhuma comunidade ou instituição científica no
planeta, é apresentado aqui como poção mágica. Trata-se de campanha sistemática
contra a vacina, traduzida por postergações enormes, apesar de que, agora, por
queda abrupta de popularidade ameaçando seu projeto de poder, ela começa a ser
revertida. E o é pela impostura, pois a vacina de aplicação preponderante e
amplamente majoritária, a Coronavac, é toda ela obra do governador João Doria.
Aliás, não faltaram discursos presidenciais contra a “vacina chinesa”. Isso
para não falar na ausência de leitos em unidades de tratamento intensivo, na
falta de oxigênio, em atrasos, erros de envio, e assim por diante, além do
boicote aos governadores. Fosse uma política racional, nada disso teria
acontecido, só a irracionalidade explica a conduta presidencial e
governamental.
De
nada adianta agora fazer uma encenação de união nacional, na qual nem os
participantes acreditam. Criar um comitê é ao mesmo tempo nada pretender fazer,
quando mais não seja pelo fato de seu objetivo ser somente compartilhar a sua
irresponsabilidade. Em vez de uma escolha técnica para Ministro da Saúde, optou
novamente por uma opção familiar, multiplicando ainda mais os conflitos
políticos. Pode dar certo um governo que se caracteriza pela ausência de
comportamentos racionais?
*Professor de filosofia na UFGRS.
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