Folha de S. Paulo
Jogo democrático não comporta a
interferência das classes armadas
As Forças
Armadas cumprem um papel relevante em um mundo composto de
nações nem sempre amistosas. O fato de deterem o monopólio da violência, no
entanto, impõe que se abstenham do jogo político. Nas democracias, esse jogo
deve se dar apenas entre cidadãos, setores e instituições desarmadas, dispostas
a resolver os seus conflitos por intermédio do voto e da lei, inclusive para
punir jogadores incompetentes, arbitrários ou corruptos. A presença de armas
subverte essa lógica.
Essa foi a postura da cúpula das Forças Armadas norte-americanas, encabeçadas pelo general Mark Milley, ao se recusar a aderir aos delírios antidemocráticos de Trump e seus apoiadores, após a vitória de Joe Biden, assim como ao se negar a empregar suas tropas para reprimir protestos resultantes do assassinato de George Floyd. É o que revela o livro “I Alone Can Fix It” (sozinho eu consigo consertar), de Carol Leonnig e Philip Rucker, que acaba de ser publicado pela Penguin.
As classes armadas brasileiras,
lamentavelmente, foram incapazes de construir ao longo de sua história uma
postura de autocontenção em relação a questões de política interna, como a
forjada pelos militares norte-americanos. Nossa tradição é outra. Mesmo
descontado o golpe que derrubou a Monarquia, em 1889, os militares brasileiros
tiveram participação direta em nada menos que nove crises políticas no último
século: 1922, 1924, 1930, 1937, 1945, 1954, 1955, 1961 e 1964. É verdade que,
na maior parte desses casos, os militares não agiram sozinhos, mas estavam
acompanhados por lideranças civis. Isso não significa, no entanto, que
interesses corporativos e mesmo pessoais de alguns líderes militares não tenham
desempenhado um importante papel na tomada de decisão de interferir no processo
político.
As três décadas de abstinência política das
Forças Armadas, pós-1988 —interrompida pelo tuíte do general Villas Bôas
voltado a intimidar o Supremo— foram marcadas, no entanto, por um crescente
ressentimento dos militares com governos civis, em função de alterações na
carreira e regime previdenciário, falta de recursos para projetos estratégicos,
assim como pela criação da Comissão Nacional da Verdade. É irônico que o
próprio Supremo, que validou a Lei de Anistia, de 1979, assegurando a
inimputabilidade de militares, tenha se tornado alvo preferencial dos mesmos.
Apesar da manifestação reiterada de ex-ministros
da Defesa, lideranças políticas e mesmo especialistas, de que não há
risco de uma intervenção militar no Brasil, é bom lembrar que além da tradição
de intervenção e do forte ressentimento com as elites da Nova República, os
militares vêm recebendo tratamento privilegiado do governo Bolsonaro. Não
apenas tiveram atendidos seus interesses corporativos mais diretos, ao ficar
fora da reforma da Previdência e de cortes mais drásticos de orçamento, mas
também viram abertas as portas giratórias de ministérios e estatais para seu
pessoal da ativa e da reserva, com as consequências
que começam a aflorar na CPI da Covid. Mais do que isso, têm sido
incitados a intervir.
Se não quiserem que as Forças Armadas brasileiras embarquem em uma aventura venezuelana (nem que as polícias o façam), nossos generais deveriam se debruçar com afinco sobre a experiência dos militares norte-americanos sob a degenerada liderança de Trump. Sobretudo, deveriam se abster de aceitar cargos no governo e soltar notas temerárias contra as instituições democráticas. A regra numa democracia é simples: quem está armado fica fora do salão.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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