EDITORIAIS
Terra arrasada
O Estado de S. Paulo
O Brasil, guardião do maior bioma tropical
do mundo e a caminho de se tornar o principal exportador agrícola, tem uma
legislação ambiental exemplar e reúne as condições para ser uma liderança no
desenvolvimento ambientalmente sustentável. Mas, apesar das juras protocolares
do presidente Jair Bolsonaro na cúpula ambiental promovida em abril pelo
presidente norte-americano, Joe Biden, não há sinal de que o seu governo
pretende rever sua hostilidade à causa ambiental.
Após a saída desonrosa do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, suspeito de integrar um esquema de exportação de madeira ilegal, o novo ministro, Joaquim Leite, tem ao menos a vantagem de ser mais discreto. Mas talvez seja até demais. Ele ainda está a dever um plano de ação para reverter a escalada do desmatamento. A Conferência do Clima da ONU (COP 26), em novembro, será decisiva para a agenda ambiental global e, logo, para os destinos do Brasil. O ministro precisará de muito mais que discrição para apresentar resultados consistentes e compromissos convincentes.
Sem Salles, a estridência antiambiental foi
assumida por próceres bolsonaristas, como a deputada Carla Zambelli (PSL-SP).
Sem qualquer experiência na área ambiental, Zambelli foi inoculada pelo governo
na presidência da Comissão do Meio Ambiente da Câmara para avançar pautas caras
ao seu líder, como o desmonte dos órgãos de fiscalização, a pretexto de
combater uma suposta “indústria de multas”, ou propostas intempestivas de
interesse puramente corporativo, como o projeto apresentado em 2014 pelo então
deputado Jair Bolsonaro de incluir policiais militares e bombeiros no Sistema
Nacional do Meio Ambiente.
O Planalto, por sua vez, retirou
arbitrariamente a atribuição do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(Inpe) de divulgar os dados sobre queimadas. A política de “matar o mensageiro”
não é nova. Em 2019, o presidente exonerou o diretor do Inpe, Ricardo Galvão.
Sem apresentar evidências, Bolsonaro acusou Galvão de agir “a serviço de uma ONG”
para “espancar” os dados e prejudicar “o nome do Brasil e do governo”.
O Inpe é um órgão estritamente técnico
ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia e bem reputado internacionalmente
há décadas. Os dados passarão a ser divulgados pelo Instituto Nacional de
Meteorologia (Inmet), ligado ao Ministério da Agricultura. “O Inpe não tinha
essa questão de conflito de interesses”, disse Galvão. “Essa mudança,
claramente, é para controlar a informação.”
Trata-se de uma verdadeira “pedalada
ambiental”, que fere o princípio da transparência da administração pública.
Ante a política de terra arrasada
(literalmente) do governo, aumenta a responsabilidade dos governos
subnacionais. Como mostrou reportagem do Estado, o grupo Governadores pelo
Clima, que conta com todos os governadores, exceto os de Roraima e Rondônia,
ambos bolsonaristas, se encontrou com diplomatas europeus para discutir
investimentos em energia renovável. Os Estados da Região Amazônica estão
apresentando propostas para receberem recursos de fundos de investimento, como
o Fundo Leaf, lançado por EUA, Reino Unido e Noruega com a participação de
empresas privadas para remunerar iniciativas de preservação nos países
tropicais.
Uma pauta crucial para os Estados onde a
agropecuária tem força é divulgar iniciativas sustentáveis do agronegócio e
medidas de repressão ao desmatamento ilegal. O movimento também chegou aos
municípios. Mais de 100 deles relataram ao Instituto Clima e Sociedade (ICS)
ter planos de ações climáticas.
São sinais de que se dissemina na gestão
pública a consciência de que a pauta ambiental não é apenas um imperativo
moral, mas econômico. Em contraste, tal como no combate à pandemia, o
obscurantismo de Jair Bolsonaro se comprovou irremediável na área ambiental. Os
demais Poderes da República, os governos subnacionais e a sociedade civil não
podem poupar esforços para erguer um cordão sanitário capaz ao menos de
salvaguardar as conquistas ambientais brasileiras até a chegada de dias
melhores.
Os impostos da inflação
O Estado de S. Paulo
Alta de preços é mais um canal para levar dinheiro das famílias para o setor governo
Muito ruim para o bolso do consumidor, a
inflação acelerada está ajudando a encher os cofres da União e dos Estados. No
caso dos governos estaduais o benefício é até fácil de perceber. Sua
arrecadação depende principalmente de um tributo cobrado sobre o consumo, o
Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Cada aumento de
preço no supermercado, ou em qualquer loja, prejudica imediatamente o comprador
e engorda a receita tributária. Depois das enormes perdas de 2020, quando a
pandemia arrasou os negócios, derrubou a tributação e ainda forçou despesas
extraordinárias, a administração volta a recolher volumes significativos de
impostos e contribuições. Essa recuperação é favorecida por dois fatores, a
retomada econômica e a forte elevação dos preços.
Apesar do aumento da produção e das vendas,
a recuperação da economia continua incompleta. Em maio, a indústria voltou ao
nível de fevereiro do ano passado, último mês antes do grande choque da
pandemia. O comércio varejista reagiu mais velozmente. Suas vendas em maio já
superaram por 3,9% o patamar pré-pandêmico, mas depois de fortes oscilações
desde outubro e com desempenhos muito diferentes entre os segmentos de lojas.
No caso da indústria, o último crescimento mensal – de 1,4% de abril para maio
– ocorreu depois de três meses de quedas consecutivas. O setor de serviços
também se recupera, mas com resultado negativo (-2,2%) nos 12 meses até maio.
Apesar desse desempenho diversificado, com
alguns setores ainda em busca da recuperação, a receita do ICMS já superou por
R$ 45,1 bilhões, nos primeiros cinco meses, o período correspondente de 2019,
ano anterior à crise de saúde, com aumento real de 10,9%. No caso do governo
federal, o ganho em relação a 2019 chegou a R$ 96,1 bilhões, com avanço de 4%,
descontada a inflação. De janeiro a maio deste ano a receita do ICMS chegou a
R$ 249,9 bilhões e a arrecadação federal, a R$ 759,5 bilhões. Os aumentos sobre
a base de 2020 foram de 16,1%, no caso dos Estados, e de 16,5%, no da União.
A recuperação dos negócios, já observada em
todos os grandes setores, seria insuficiente para proporcionar todo esse ganho
fiscal. A arrecadação foi reforçada pelo aumento de preços e, em alguns casos,
também pela oscilação cambial, isto é, pela alta do dólar, como têm reconhecido
técnicos e autoridades da área fiscal.
Com a boa surpresa da arrecadação, o
desequilíbrio fiscal tende a diminuir. Além disso, melhoram as perspectivas de
evolução da dívida pública. Quando se considera o governo geral, formado pelos
três níveis da administração mais o INSS, o risco de uma dívida superior a 90%
do Produto Interno Bruto (PIB) no fim deste ano parece bem menos preocupante.
Mas ninguém deveria encarar como folgada a situação das contas públicas.
Uma expansão do investimento – em
infraestrutura, talvez, ou em equipamentos de serviços educacionais ou de saúde
– será um bom uso do dinheiro, se o ganho fiscal observado até agora for
sustentável. Seria arriscado assumir compromissos duradouros. O País atingiu,
simplesmente, uma situação fiscal menos precária do que se poderia prever até
recentemente. Não alcançou uma boa situação.
Aceitar limitações e valorizar a prudência
na gestão pública será especialmente importante nos próximos meses. Com a
aproximação de um ano de eleições, ficará mais forte, dia a dia, a tentação de
usar o dinheiro público para a conquista de votos. As pressões sobre o ministro
da Economia, já muito fortes, tenderão a aumentar. Essas pressões, como tem
ocorrido até agora, partirão tanto da chamada base parlamentar quanto de
integrantes do Executivo. Será enorme surpresa se o presidente da República
impuser amplas barreiras a essas pressões e se fizer um defensor da prudência
fiscal.
Acima de tudo será preciso levar em conta
um dado essencial: ganho fiscal duradouro e seguro é aquele resultante do
crescimento econômico, da boa gestão convertida em rotina e de uma economia
saudável e, portanto, sem desajuste inflacionário como o de hoje.
Desafios da democracia latino-americana
O Estado de S. Paulo
Às renitentes mazelas desta região se soma uma crise de representatividade global
Após a redemocratização dos anos 80 e 90, a
democracia latino-americana se encontra em um ponto de inflexão. Na última
década, os avanços sociais nutridos pelo superciclo das commodities estancaram.
O desgaste dos populismos de esquerda legou um cenário fiscal periclitante. Às
renitentes mazelas latino-americanas – a corrupção, a ineficiência dos serviços
públicos ou a violência – veio se somar uma crise de representatividade global,
que catalisou, entre outras coisas, os populismos reacionários. Os protestos de
2019 foram abafados pela pandemia, ao mesmo tempo que suas causas foram
agravadas por ela.
Neste cenário, foi oportuna a proposta da
Fundação FHC de dedicar um dos debates do ciclo que celebra os 90 anos do
presidente Fernando Henrique à Arte da política democrática e os desafios da
globalização. Junto a FHC, outros estadistas intelectuais – o ex-presidente do
Chile Ricardo Lagos; o ex-presidente do Uruguai Julio Maria Sanguinetti; e o
ex-chanceler uruguaio Enrique Iglesias – abordaram os desafios da transição
democrática e seus reflexos na contemporaneidade.
FHC descartou o risco de que a “árvore da
democracia” seja arrancada pela raiz, mas alertou que ela pode definhar por
falta de cultivo. Sanguinetti apontou que, aos desafios políticos da
redemocratização e aos desafios econômicos da industrialização tardia, a
pandemia gerou um “estranho parêntese” que impôs três “pontos de interrogação”
críticos à democracia latino-americana: a aceleração da digitalização; a
recuperação da centralidade do Estado (com os riscos das tentações
autoritárias); e as vulnerabilidades sociais.
“Esta pandemia revelou o nível de nudez de
nossos países sobre esses temas”, disse Lagos. A exportação de bens primários
vem dando alguma aceleração à recuperação econômica, “mas não recuperaremos
rapidamente o emprego”. O choque de digitalização mostrou que o que era
produzido com 10 milhões de empregados pode ser produzido com 9 milhões, “mas
como criaremos empregos para este milhão remanescente?”. Outro efeito da
digitalização, segundo Lagos, é que as redes sociais tornam a política mais
“horizontal” do que “vertical”. “Falta ainda descobrir que instituições
políticas surgirão como resultado da revolução digital.”
As dificuldades da representação
político-partidária foram ilustradas a partir do cenário brasileiro: “Não são
os partidos que conduzem o povo, o voto depende muito mais do desempenho
pessoal”, disse FHC, “mas quando se chega ao poder, a vontade do governante não
prevalece sem passar pelo Congresso.” É preciso “vivenciar uma permanente busca
de composição entre a vontade das pessoas e a aceitação dessa vontade pelos
partidos no Congresso”. Quando a autoridade máxima é refratária a buscar essa
composição, como no Brasil, desencadeiam-se atritos institucionais perigosos.
Somem-se a essas dificuldades a crise do
multilateralismo e o desafio da inserção da América Latina no confronto entre
China e EUA. Como lembrou Sergio Fausto, um dos moderadores, a batalha entre a
democracia e o autoritarismo no século 21 tem características distintas da do
século 20. Na guerra fria, a URSS era uma potência “evitável”, sem conexões
econômicas com o mundo liberal. Já a China, apontou Sanguinetti, se parece
muito mais com o “velho império britânico”, é “muito mais comerciante” e não
busca uma hegemonia político-ideológica. Não obstante, o controle da economia
chinesa pelas lideranças político-ideológicas impõe à comunidade global o
desafio de repactuar as condições de cooperação econômica e, ao mesmo tempo,
contrapor-se aos abusos do autoritarismo.
Maus intelectuais costumam apresentar soluções simplistas para desafios complexos, e maus estadistas costumam impô-las pela força. Como bons intelectuais, os debatedores mostraram-se muito mais preocupados em expor com precisão os desafios. E, como bons estadistas, mostraram que as soluções dependerão da capacidade do povo de materializar sua vontade em instituições inovadoras e de líderes capazes de encarná-la.
Farra eleitoral
Folha de S. Paulo
Sem justificativa, mundo político quer mais
dinheiro público no pleito de 2022
Num governo cujo chefe é ao mesmo tempo
refém e patrocinador de interesses clientelistas, deterioram-se as balizas
institucionais que deveriam disciplinar a gestão dos recursos públicos.
Ataques ao erário vão se acumulando sob a
liderança de parlamentares do centrão, que agem com inacreditável desfaçatez em
prol de seus interesses paroquiais.
Depois do fiasco no Orçamento de 2021, em
que a incompetência do Executivo abriu caminho para uma farra de emendas, os
congressistas atacaram novamente na votação da lei de diretrizes para peça
orçamentária do próximo ano
Entre vários dispositivos reprováveis, o
mais escandaloso foi a imposição de critérios que podem levar a um aumento do
fundo eleitoral de R$ 1,8 bilhão para R$ 5,7 bilhões. Embora a
definição de valores ainda dependa de novas votações, o sinal é inequívoco.
Reconheça-se que o financiamento de
eleições é questão que desafia as democracias de todo o mundo, sem que se tenha
chegado a uma solução plenamente satisfatória para garantir disputas mais
limpas e justas.
No Brasil, lida-se com as consequências da
decisão precipitada de proibir as doações de empresas após os esquemas de
corrupção descobertos pela Lava Jato.
Deixou-se de lado a alternativa, defendida
por esta Folha, de estabelecer limites nominais para a participação
empresarial, de forma a evitar o peso desproporcional do poder econômico.
Agora, o mundo político pretende simplesmente empurrar aos contribuintes o
custo de suas campanhas milionárias.
Não se conhece justificativa razoável para
que o pleito de 2022 custe mais que o de 2018 —quando o fundo teve cerca de R$
2 bilhões, em valores corrigidos pela inflação. Nem mesmo se pode garantir que
o novo montante evite a prática do caixa dois.
Outro objetivo das lideranças do centrão é
ampliar o quinhão do Orçamento sob sua influência direta. Para tanto foram
novamente aprovadas normas que viabilizam mais recursos para emendas
parlamentares com reduzida transparência.
Deputados e senadores buscam maximizar suas
chances de reeleição com verbas destinadas a seus redutos. Assim, permanecerão
fundamentais para a sustentação do próximo governo. Por enquanto, vão ficando
com Bolsonaro, um presidente cada vez mais fraco.
Embora não seja surpresa, é alarmante que
se permitam tais ataques ao erário, com a conivência de tantos outros agentes
políticos à esquerda e à direita também ávidos por dinheiro público.
Clima de urgência
Folha de S. Paulo
Europa anuncia plano contra aquecimento
global, e Brasil tende a ser uma vítima
Altas de temperatura batendo recordes no
oeste dos EUA e do Canadá. Pior seca no Brasil em 91 anos. Chuvas torrenciais
na Europa deixam centenas de vítimas.
Antes mesmo de enfrentar seus dias de
Terceiro Mundo, a União Europeia anunciou planos
audaciosos para contra-arrestar a mudança climática que,
asseveram os melhores especialistas, está por trás dessas catástrofes.
Mais frequentes, os desastres agregam
urgência às negociações internacionais contra o aquecimento global, porém não o
bastante para evitar o pior. Europeus mais uma vez se põem na vanguarda, só que
conjunturas diversas de política doméstica ainda cerceiam o nível de ambição em
países-chave para a mitigação.
O plano Fit for 55 da EU prevê que as 27
nações reduzam em 55% emissões de carbono alimentadoras da fornalha do clima,
até 2030, tomando por base níveis de 1990. Melhor que os EUA de volta à mesa do
Acordo de Paris prometendo corte entre 40% e 43%, mas aquém do Reino Unido
(68%).
Atraiu atenção geral a meta de proibir após
2035 o fabrico de automóveis com motores a combustíveis fósseis. Mais
consequências internacionais, contudo, se esperam do chamado mecanismo de
ajuste de carbono na fronteira.
Na prática, é um imposto sobre importação
de carbono. Empresas que se aproveitarem de regulações frouxas de outras nações
para produzir bens destinados ao continente ficarão sujeitas a taxas.
Europeus se reservam o direito de
reconhecer esforços deste ou daquele país para abonar o gravame, e tal
discricionariedade decerto engendrará acusações de protecionismo. Da China,
quiçá, que por ora só admite estancar o crescimento de emissões em 2030.
Mais ameaçadora se mostra a iniciativa para
o Brasil. Chineses, ao menos, têm políticas claras de descarbonização do
desenvolvimento; aqui se caminha para trás.
O governo de Jair Bolsonaro só promete o
que não lhe cabe cumprir: neutralizar as emissões nacionais em 2050. Não tem
nenhum plano sobre como chegar lá, pois precisaria começar já se quisesse dar
credibilidade ao compromisso.
Ao contrário, para premiar a banda mais
atrasada do agronegócio, deixa fora de controle a maior fonte brasileira de
gases do efeito estufa —o desmatamento. A Amazônia, que sempre figurou como
sumidouro de carbono, tornou-se emissora líquida de poluição.
Nessa toada, a política de descaso de
Bolsonaro para o ambiente ainda vai custar muito mais caro para o Brasil do que
já custa.
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