O Estado de S. Paulo
Pelas condições de vida, somos um país
paupérrimo e obscenamente desigual
A indagação que paira sobre as nossas
cabeças é se o nosso trenzinho caipira começou, finalmente, a subir a serra, ou
se prossegue em seu patético desnorteio, descambando rumo ao abismo.
As últimas semanas trouxeram duas notícias
alvissareiras. Primeiro, a de que o impulso do agronegócio tende a dinamizar o
crescimento econômico nos próximos meses, a ponto até, quem sabe, de estimular
a entrada de investimentos estrangeiros. Segundo, a última pesquisa eleitoral
do Datafolha ofereceu claras indicações de que as urnas mandarão o sr. Jair
Bolsonaro de volta ao lugar de onde nunca devia ter saído.
Chamar de “trenzinho caipira” um país com
um agronegócio poderoso pode soar como um atrevimento. É como chamar de
“carroça” a nona ou décima maior economia do mundo. Pelo critério do volume
absoluto, não há dúvida, podemos sair por aí batendo nosso bumbo caipira. Mas
em seguida precisamos examinar a renda anual por habitante, a catastrófica
situação do nosso sistema de ensino, o desempenho de, no mínimo, 30% dos
indivíduos com mais de 15 anos, já praticamente vitimados pela sentença de
morte do analfabetismo funcional. No tocante ao saneamento – e não precisamos
retomar aqui o tema da covid-19 –, sabemos que quase metade dos domicílios
continua sem ligação com a coleta pública de esgotos.
Ou seja, pelo ângulo das condições de vida, não há o que discutir. Somos um país paupérrimo e obscenamente desigual.
Neste ponto, cumpre-nos retomar o
indiscutível sucesso do agronegócio. Por vigoroso que seja, um processo de
crescimento centrado num só setor, sem diversificação, dificilmente nos
proporcionará a desejada elevação do piso social a um nível razoável e a
redução das desigualdades. Podemos construir um país riquíssimo para 10% ou 20%
da população, mas os restantes 90% ou 80% legarão a seus descendentes a mesma
triste condição em que lhes foi dado viver. Diversificar como, num país que não
consegue impulsionar a pequena empresa, que não se notabiliza pelo desenvolvimento
de tecnologias e tem em seu seio um mar de semianalfabetos?
A confirmar-se o cenário eleitoral
entreaberto pela pesquisa do Datafolha, e tendo em conta a notória inapetência
dos partidos de centro, Lula subirá novamente a rampa do Planalto no dia 1.º de
janeiro de 2023 e lá permanecerá p or mais oito anos. Isso é bom ou ruim?
Difícil dizer com tanta antecipação, pois Lula não é um, são vários. Há o Lula
demagogo, mentiroso, leniente com a corrupção, que imagina resolver os
problemas sociais do Brasil apenas com transferências de renda, e há o Lula
esperto, afeito ao jogo político, capaz de entender o xadrez das negociações. O
que decididamente não lhe convém é pensar que tirará de letra os problemas de
seu eventual retorno à Presidência. O Brasil será quase tão pobre como é hoje,
as desigualdades serão as mesmas, e será um país muito mais rancoroso, muito
menos disposto a comprar suas tiradas de palanqueiro.
A tragédia que se seguiu ao retorno de
Getúlio Vargas em 1950 é um paralelo que não deve ser esquecido. O personagem
central era o mesmo, mas as condições que ele encontrou pouco tinham que ver
com as de seu tempo de ditador.
Cabe aqui mais uma palavra sobre a caricata
figura de Jair Bolsonaro. Do desconsolo de sua passagem pela Presidência só consigo
extrair um ponto positivo: que desta vez a reforma política entre realmente na
agenda política do País. E que se estabeleça, desde já, sem tergiversação, esta
premissa básica: reforma política é assunto sério demais para ser deixado sob a
responsabilidade apenas dos parlamentares e demais agentes políticos sediados
em Brasília. Contribuições e pressões de fora para dentro: eis o nome do jogo.
De elites preguiçosas o Brasil já teve o suficiente.
A pedra de toque da reforma política é, sem
dúvida, a engrenagem formada pelo sistema de governo (presidencialismo ou
parlamentarismo) e pelo sistema eleitoral. É fácil prever que certos interesses
e certa malta de ignorantes esgrimirá mais uma vez o argumento de que o
parlamentarismo não condiz com uma suposta constante de nossa História: a
mística devoção à figura do “chefe” e um irresistível desejo de obedecer. Nessa
linha de raciocínio, só esse “chefe” pode conferir estabilidade e consistência
ao exercício do poder. Essa tese é continuamente esgrimida por uma parcela da
classe política que deve ter passado por um surto de amnésia e dele não
conseguiu se recuperar.
Nunca é demais lembrar que, além de Getúlio e João Goulart, derrubados, o processo sucessório presidencial passou por turbulências durante os 21 anos do governo militar, deixando entrever fendas graves mesmo entre a alta oficialidade das Forças Armadas. Relembro, a propósito, a pitoresca demissão do ministro do Exército general Sylvio Frota, que sabidamente tramava alguma ação heterodoxa contra o general-presidente Ernesto Geisel. Convocado ao palácio, Frota esboçou uma reação, mas ouviu do general Geisel uma resposta concisa: “O cargo é meu”.
*Sócio-diretor da Augurium Consultores, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
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