O Globo
Círculos trumpistas nos Estados Unidos
difundiram a teoria da conspiração de que democratas, empresários e artistas
estariam envolvidos numa ampla rede de tráfico de crianças para cometer
canibalismo e pedofilia. Donald Trump teria descoberto o complô e estaria
secretamente trabalhando para denunciar e prender os responsáveis.
A tese estapafúrdia foi exposta num fórum
de internet anônimo por alguém que dizia ser um funcionário público de alto
nível e que adotava o pseudônimo QAnon.
De maneira semelhante, círculos
bolsonaristas começaram a difundir nas últimas semanas uma teoria da
conspiração tão desvairada quanto a de QAnon. Receberam a adesão de ninguém
menos que o próprio presidente Jair Bolsonaro.
A teoria diz que um ex-dirigente do PT, treinado em Cuba, teria conseguido provas do envolvimento de um ministro do Supremo com um famoso estuprador em atividades sexuais impróprias e que, com base nessas provas, estaria chantageando o ministro para conceder decisões favoráveis ao PT e fraudar as eleições de 2022. A tese, obviamente, não tem pé nem cabeça.
Como toda teoria da conspiração, essa
também tem muitas variantes. Em algumas versões mudam o tipo de conduta sexual
inapropriada e as provas que teriam sido reunidas; noutras, mais ministros do
Supremo seriam chantageados.
A tese estapafúrdia aparece de maneira
dissimulada em blogs, postagens no Twitter e de maneira mais aberta em
correntes anônimas no WhatsApp. No começo do mês, recebeu o endosso de
Bolsonaro.
No dia 4, o presidente fez uma série de
postagens no Twitter abonando o despropósito que tinha começado a circular um
pouco antes. “Vamos supor uma autoridade filmada numa cena com menores (ou com
pessoas do mesmo sexo ou com traficantes) e esse alguém (‘Daniel’) passe a
fazer chantagem ameaçando divulgar esse vídeo”, escreveu. “Parece que isso está
sendo utilizado no Brasil (importado de Cuba pela esquerda) onde certas
autoridades tomam decisões simplesmente absurdas, para atender ao chantageador
(‘Daniel’).” Daniel é o codinome adotado, durante o período da ditadura
militar, por um ex-dirigente do PT, que já tomou as medidas judiciais cabíveis.
O endosso a essa tese conspiratória
alucinada e completamente absurda é semelhante aos sinais em código que Trump
emitia durante seus discursos, celebrados pelos defensores das teses de QAnon
como uma espécie de culto. O método é chamado de “apito de cachorro”, uma
sinalização que só os iniciados compreendem.
Há bastante controvérsia no meio acadêmico
acerca de a conspiração difundida por QAnon ter influenciado de maneira
relevante o voto nas eleições americanas de 2020. Mas não há muita controvérsia
sobre a difusão da teoria ter colaborado para ampliar a intolerância a
democratas e depois para respaldar a tese de que uma conspiração de autoridades
teria fraudado o resultado (32% dos americanos seguem acreditando que a eleição
presidencial foi roubada).
É difícil determinar o momento em que uma teoria da conspiração está tão disseminada que é preciso começar a combatê-la, sem o risco de, ao fazê-lo, involuntariamente ajudar a difundi-la. Acredito que o endosso do presidente e o empenho da máquina de propaganda bolsonarista me autorizam a emitir o alerta.
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