O Estado de S. Paulo
Mito da ‘democracia racial’, como todo
mito, é construção sem base na realidade
A final da copa europeia de seleções, entre
Itália e Inglaterra, foi uma partida eletrizante, cuja transmissão bateu
recordes de audiência no mundo inteiro. Será lembrada no futuro não apenas pelo
caráter épico, mas também por um episódio infame: os ataques racistas aos três
jogadores britânicos que não converteram suas cobranças na decisão por
pênaltis.
Os episódios de racismo se tornaram tristemente comuns no futebol europeu. Em protesto contra eles, jogadores de quase todas as seleções se ajoelharam antes das partidas da Euro. As ofensas de alguns torcedores ingleses, nas redes sociais, contra os craques Saka, Sancho e Rashford foram – não poderia ser diferente – condenadas com veemência pelo primeiro-ministro Boris Johnson, pelo prefeito de Londres, Sadiq Khan, e pelo príncipe William. Crimes que são, devem ser investigadas e punidas.
Os brasileiros costumam dizer que episódios assim não ocorrem em nosso país. De Leônidas da Silva a Neymar, passando por Didi, Pelé, Garrincha, Romário e Ronaldo, alguns dos maiores craques do nosso futebol são negros e se tornaram ídolos nacionais. Durante muito tempo o mito da “democracia racial” foi forte entre nós. Como todo mito, é uma construção sem base na realidade. Um exemplo na mesma arena, a esportiva: os jogadores Fernandinho e Gabriel Jesus foram igualmente vítimas de racismo nas redes sociais quando o Brasil foi eliminado pela Bélgica na última Copa do Mundo.
“O racismo permeia todas as camadas e toda
a trajetória da sociedade brasileira”, diz o escritor Laurentino Gomes,
ex-editor do Estadão e personagem do minipodcast da semana. Ele acaba
de lançar o segundo volume da trilogia Escravidão. Laurentino diz que, em
sua pesquisa para a obra, formou a convicção de que abordava o tema mais
relevante de nossa história.
A libertação dos escravos não foi o ato de
piedade de uma princesa, mas resultado de um dos primeiros levantes da
sociedade civil brasileira. Este jornal – na época chamado de A Província
de S. Paulo – foi um dos defensores do movimento. Pouco antes da abolição,
a população negra já predominava no Brasil, e um contingente grande já conquistara
a alforria.
“O maior problema de nossa sociedade é a
desigualdade, e a desigualdade é, em parte, herança da escravidão”, diz
Laurentino. Ele se refere ao fato de que, depois da Lei Áurea, as autoridades
brasileiras deixaram a enorme população de ex-escravos completamente
desamparada. Sem saúde pública, sem condições mínimas de saneamento – e sem
educação decente que possibilitasse acesso aos melhores postos do mercado de
trabalho.
O livro mostra também a enorme riqueza
dessa África que cruzou o oceano e aqui viveu em condições sub-humanas. Ela se
expressa, entre outras coisas, na cultura, na religião e nas técnicas
agrícolas. Mais de um século se passou desde a abolição, houve avanços
inegáveis – mas o fato é que grande parte da população afrodescendente ainda
vive em condições precárias e não tem acesso a uma educação de qualidade. Na
era do conhecimento, em que diversidade é um valor, é uma perda inestimável não
apenas humanitária, mas também econômica.
O Brasil, como defende Laurentino, precisa se aprofundar no estudo da escravidão e atacar veementemente essa herança perversa. É bom que existam heróis negros no panteão do País. Isso, no entanto, não nos exime do acerto urgente que precisamos fazer com nosso passado.
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