sexta-feira, 24 de setembro de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Cobaias humanas de cientistas inescrupulosos

O Globo

A pandemia trouxe a ciência ao centro da vida dos brasileiros e do debate político. Epidemiologistas, virologistas e infectologistas de ocasião passaram a debater uso de máscaras, eficácia de vacinas, taxas de contágio, distanciamento social, imunidade de rebanho — e tudo o que tivesse relação com o coronavírus. O conhecimento avançou rápido, produziu vacinas em tempo recorde e acumulou quantidade sólida de evidências sobre prevenção e tratamento da Covid-19.

Lado a lado com a ciência, porém, proliferou também a ignorância. Como a ciência trabalha diante do desconhecido, tenta reduzir o espaço para dúvidas, mas sem nunca extingui-lo, é incapaz de fornecer o tipo de certeza que a população gostaria de ter. Políticos se aproveitaram dessa limitação para disseminar desinformação e arrebanhar apoio entre incautos.

Não há melhor exemplo do que o presidente Jair Bolsonaro fazendo propaganda de remédios sabidamente ineficazes contra a doença. Até as emas do Palácio da Alvorada e o mármore de Carrara das Nações Unidas foram obrigados a ouvir lorotas sobre o tresloucado “tratamento precoce” à base de cloroquina, ivermectina e que tais. Na CPI da Covid, os mesmos absurdos são repetidos feito disco riscado pelos senadores Luiz Carlos Heinze, Eduardo Girão, Marcos Rogério, Marcos do Val e os demais identificados como “bancada da cloroquina”. Transparecem, cada um com seu estilo, tanta obtusidade que chega a ser patético.

Mas uma coisa é a ignorância, resultado sem dúvida da falta de acesso ao conhecimento ou de abertura ao aprendizado. Outra, bem diferente, é a avalanche de descobertas recentes sobre os brasileiros usados como cobaias humanas em testes que violaram os princípios éticos mais fundamentais.

As principais acusações pesam contra a Prevent Senior, nova protagonista da CPI. As denúncias vão muito além da mera distribuição do nefando “kit Covid” com drogas ineficazes, propagandeado pelo bolsonarismo sob o beneplácito pusilânime do Conselho Federal de Medicina. A GloboNews revelou que médicos da Prevent omitiram mortos num estudo fajuto divulgado no ano passado para promover a cloroquina, adulteraram prontuários para esconder mortes pela Covid-19 e foram proibidos de informar aos pacientes que remédios tomavam. Um diretor da Prevent chegou a insinuar ao médico que denunciara o esquema que “ameaçasse o repórter”.

Não foi a única tentativa de sufocar a imprensa. Os responsáveis por outra pesquisa com cobaias humanas no Amazonas, ligados à rede Samel, tentaram censurar na Justiça a reportagem do GLOBO que revelava detalhes de como mentiram aos pacientes e continuaram a aplicar outra droga ineficaz — a proxalutamida — mesmo naqueles com piora visível, apenas para inflar os resultados. Esse “estudo” acabou em 200 mortes, muitas evitáveis.

É ocioso repetir que tais práticas violam todos os protocolos e normas éticas em vigor. Aparentemente, tudo em nome da fama fácil de aplicar um verniz científico ao negacionismo bolsonarista. Prevent Senior e demais envolvidos não podem alegar ignorância. Não se trata de charlatanismo inócuo. As evidências apontam para crimes da pior espécie, que jamais esperaríamos de cientistas, mas infelizmente são mais comuns do que gostaríamos. Investigação e punição precisam ser rápidas, firmes, exemplares.

Missão de fechar 2022 com inflação dentro da meta continua desafiadora

O Globo

Foi acertada a decisão do Comitê de Política Monetária (Copom), do Banco Central (BC), na quarta-feira, de aumentar a Selic, a taxa básica dos juros, em 1 ponto percentual, de 5,25% para 6,25%. Uma nota divulgada após o anúncio deixou claro que haverá outra alta de igual magnitude na próxima reunião do Copom, prevista para o final de outubro.

Confirmada a nova alta, terão sido seis aumentos consecutivos, sinal inequívoco da intenção do BC de trazer o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) para perto da meta de 3,5% em 2022, dentro da banda de tolerância de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo.

Toda a atenção se concentra no ano que vem, uma vez que o IPCA dos últimos 12 meses está em 9,68%, e 2021 deverá fechar com uma inflação superior a 8%, bem acima do teto da meta de 5,25%. Não há nenhuma surpresa para quem acompanha os preços em supermercados, postos de gasolina ou nas contas de luz e gás.

Apesar do último anúncio do BC, persistem os sinais de preocupação sobre a inflação em 2022, mesmo dentro do próprio governo. Uma eventual piora da crise hídrica, causada pela estiagem recorde e também pela falta de planejamento apesar de quase uma década de regime de chuvas fora do comum, poderá provocar novas altas no custo da energia. O risco Bolsonaro — a sucessão de crises institucionais provocadas pelo presidente — é um dos fatores que mantêm o dólar alto, com reflexos na inflação. O período de relativa calma dos últimos dias deverá deixar saudades à medida que as eleições do ano que vem forem se aproximando.

Ainda entre os perigos de “fogo amigo”, um dos pontos mais preocupantes é o risco fiscal elevado, que tende a subir mais com as novas investidas do presidente para elevar os gastos em ano eleitoral. No radar do Copom há também outras variáveis, como a possível alta dos juros nos Estados Unidos em 2022 (sinalizada nesta semana por parte dos integrantes do Fed, o banco central americano), pressões na cotação do dólar e o comportamento das commodities, produtos cuja cotação é definida no mercado internacional.

Parte dos economistas esperava um aumento maior da Selic neste mês, tendo em vista que a previsão média do mercado para o IPCA de 2022 tem crescido nas últimas semanas. Os diretores do BC tentam se equilibrar entre a missão de ancorar as expectativas do mercado e a intenção de não exagerar demais na dose e acabar atrapalhando de forma desnecessária a recuperação econômica.

A verdade é que o BC tem feito o que está a seu alcance, mas a resposta para a ameaça inflacionária depende hoje muito mais do aspecto fiscal que da política monetária. Enquanto não houver perspectiva de equilíbrio orçamentário, ela continuará presente.

Calote e reeleição

O Estado de S. Paulo

Precatórios e Auxílio Brasil são componentes de cálculos voltados para os interesses particulares de um presidente pouco empenhado na administração do País e na solução de problemas

Desarvorada, sem rumo e incapaz de cuidar da economia e do dinheiro público, a equipe econômica pretende sacramentar o calote como prática regular e ainda cobrar pelo pagamento de precatórios, isto é, de dívidas judiciais. Em negociação com o Congresso, a fixação de um limite anual para a liquidação desses compromissos, tendo como referência o valor dessa despesa em 2016, é mais um abuso. O precatório corresponde a uma obrigação já atrasada. O credor, nesse caso, já foi prejudicado e precisou ir à Justiça para conseguir a reafirmação de seu direito. Qualquer tentativa de negar ou de contornar esse direito é uma nova tentativa de calote.

Além de pretender limitar o pagamento anual, o ministro da Economia, Paulo Guedes, tenta converter a operação em negócio lucrativo para o Tesouro. Por uma das inovações propostas, o credor poderá receber pagamento imediato com desconto de 40%. Se implantado, esse procedimento será uma cópia aberrante de uma transação realizada, de forma legítima, no mercado. Instituições financeiras podem comprar, com redução de valor, direitos de credores do setor público. Essa é uma operação semelhante ao desconto de um título. Em troca de uma remuneração, a instituição assume o risco, adianta o dinheiro e o credor do governo vai cuidar da vida.

Não há como confundir o Tesouro com uma instituição de mercado. Quando um banco adianta dinheiro a um credor do governo, em troca de seu direito, ocorre uma transação normal entre dois agentes qualificados para comprar e vender. A cobrança de remuneração pela entidade financeira é um fato rotineiro, componente normal do negócio. O Tesouro, como devedor, de nenhum modo se confunde com uma empresa fornecedora de financiamento. Não tem sentido cobrar pelo pagamento de uma dívida, especialmente de uma dívida em atraso e enfim cobrada com base em decisão judicial. A proposta de pagamento imediato com desconto de 40%, ou de qualquer outro valor, assemelha-se a uma extorsão.

O acordo em discussão com o Congresso envolve outras formas de liquidação de compromissos, como o abatimento de débitos com a União e a compra de bens públicos. Essas propostas são mais dignas de discussão. Quanto ao pagamento em dez vezes, com parcelas corrigidas pela Selic, a taxa básica de juros, é uma solução também ruim, porque favorece muito mais a União do que o credor.

Mas a mudança de regras para os precatórios, por meio de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), é motivada muito mais por um objetivo eleitoral do que por um problema de administração das finanças públicas. Não se trata apenas de abrir espaço no Orçamento para permitir a execução de gastos obrigatórios ou de investimentos importantes para o desenvolvimento econômico e social. O presidente da República precisa de condições fiscais para implantar o Auxílio Brasil, sua versão ampliada do programa Bolsa Família.

Esse interesse pode parecer estranho a quem pensa no Jair Bolsonaro de outros tempos. Esse político é lembrado por manifestações de desprezo àquele programa e pelo descaso em relação aos pobres, a seus problemas e, de modo mais amplo, às condições de vida e às preocupações da maior parte dos trabalhadores – dos trabalhadores de verdade, envolvidos em atividades honestas e úteis. O empenho do presidente em criar um Bolsa Família com sua marca é facilmente compreensível, no entanto, quando se pensa em seu esforço para continuar no poder. A reeleição é um dos meios possíveis para isso, embora as falas golpistas do presidente e manifestações de seus apoiadores insinuem outras possibilidades.

Precatórios e Auxílio Brasil são componentes de cálculos voltados para os interesses particulares de um presidente pouco empenhado, em geral, na administração do País, na solução de problemas econômicos e sociais e na promoção do desenvolvimento. O risco de mais perdas para os credores de precatórios é parte desse jogo. Há outras formas de ampliar o Bolsa Família, mas envolvem políticas sérias e podem atrapalhar o relacionamento com o Centrão.

A escalada dos juros

O Estado de S. Paulo

Copom deixa clara a intenção de endurecer sua política e cuidar menos do crescimento

Ainda assombrado pela inflação, o Brasil chegará ao réveillon, quase certamente, com juros básicos de 8,25% e novos aumentos previstos para os meses seguintes. Mais entraves ao crescimento econômico e à criação de empregos, além de maiores custos para o Tesouro, serão alguns dos efeitos do aperto prometido pelo Copom, o Comitê de Política Monetária do Banco Central (BC). A promessa ficou clara na última quarta-feira, quando foi anunciado o aumento da taxa básica para 6,25%. Foi a quinta alta consecutiva, em 2021, e pela segunda vez o acréscimo foi de 1 ponto porcentual. Dentro de um mês e meio, na próxima deliberação, o patamar de 7,25% será provavelmente atingido, segundo o roteiro informado. Na última reunião do ano, em dezembro, a previsão do mercado, de 8,25%, poderá ser confirmada.

O desafio para o Copom é enorme. A inflação deste ano deve passar de 8%, superando amplamente o centro da meta, de 3,5%, e também o limite de tolerância, de 5,25%. O objetivo do comitê, agora, é domar a alta de preços em 2022 e conduzi-la à nova meta, fixada em 3,5%. Pela última projeção do mercado, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) deve subir 4,1% no próximo ano e só chegar à meta (3,25%) em 2023, no começo do novo mandato presidencial. Também de acordo com a estimativa do mercado, a taxa básica de juros, a Selic, deverá estar em 8,5% em dezembro do próximo ano.

O BC procurou combinar, até recentemente, dois objetivos nem sempre conciliáveis: a contenção dos preços e o crescimento econômico. As novas pressões inflacionárias, segundo o Copom, eram passageiras e seria possível enfrentá-las com um ajuste gradual dos juros. Mas a inflação continuou avançando e chegou muito perto de 10% nos 12 meses terminados em agosto. Diante dessa realidade, o aperto monetário ficou mais forte e diminuiu a preocupação com o crescimento.

No jargão típico dos bancos centrais, a mudança é informada no comunicado de quarta-feira: “Neste momento, o cenário básico e o balanço de riscos do Copom indicam ser apropriado que o ciclo de aperto monetário avance no território contracionista”. Em português corrente, o aviso seria mais alarmante: cuidem-se, porque vamos tratar da inflação e pôr de lado outros objetivos.

Esse é o recado mais importante da nota publicada depois da última reunião. A mensagem é compatível com o compromisso, explicitado há alguns dias pelo presidente do BC, Roberto Campos Neto, de fazer o necessário para frear os preços.

No cenário descrito no começo do comunicado aparecem com clareza os desafios do momento. “A inflação ao consumidor segue elevada”, a alta dos preços de bens industriais “ainda não arrefeceu e deve persistir no curto prazo” e os preços dos serviços têm subido mais velozmente. Além disso, “persistem as pressões sobre componentes voláteis, como alimentos, combustíveis e energia elétrica, que refletem fatores como câmbio, preços de commodities e condições climáticas desfavoráveis”.

Chama a atenção a referência ao câmbio. A instabilidade cambial, com o dólar muito caro, tem persistido desde o ano passado. Mas esse fator nunca havia aparecido com destaque em notas ou atas do Copom, apesar de sua influência nos preços. O dólar muito valorizado, num país com sólido superávit comercial e razoável volume de reservas, como o Brasil, é efeito óbvio da incerteza sobre a consolidação fiscal e da insegurança criada pelo comportamento do presidente da República.

O presidente Jair Bolsonaro é uma fonte de instabilidade econômica e de pressões inflacionárias. Dúvidas sobre a política fiscal e sobre os ajustes e reformas podem afetar a formação dos preços, de acordo com advertência repetida pelo Copom. A principal fonte dessas dúvidas ocupa o gabinete principal do Palácio do Planalto, mas o comitê nunca explicitou esse ponto. O presidente do BC, no entanto, contou recentemente como é difícil cuidar da inflação num ambiente tão tenso. Resta descobrir se alguma taxa de juros será suficiente para neutralizar os efeitos de tanta insegurança.

Terremoto geopolítico

O Estado de S. Paulo

A disputa entre Estados Unidos e China determinará os destinos do século 21

O novo pacto de defesa entre Austrália, Reino Unido e EUA (Aukus) marca um capítulo decisivo do que vem sendo chamado de “nova guerra fria”. O objetivo é traçar uma linha de contenção às ameaças chinesas no Indo-Pacífico, mas, como na antiga guerra fria, seu impacto move as placas tectônicas geopolíticas de todo o planeta. Os tremores já se fazem sentir.

O pacto é uma complexa colaboração diplomática e militar, envolvendo tecnologias como computação quântica e inteligência artificial. Sobretudo, estabelece o compromisso de auxiliar a Austrália a adquirir uma frota de submarinos nucleares.

A resposta da China foi imediata: o país se ofereceu para integrar o pacto comercial transpacífico entre 11 países da região, enquanto seus diplomatas “lobos guerreiros” acusavam a “mentalidade da guerra fria” americana.

Mas, se a polarização entre EUA e China justifica a alusão à velha guerra fria, há muitas diferenças. As relações com a China são multivalentes: além da rivalidade militar, envolvem trocas econômicas e a colaboração em objetivos comuns, como as mudanças climáticas. A China é a principal parceira comercial da Austrália e tem relações econômicas volumosas com EUA e Reino Unido. Diferentemente da Otan, o bloco criado para conter a URSS, a detenção da China está sendo construída por uma pluralidade de alianças. 

Sintomático dessa complexidade é o fato de que foram justamente as pressões econômicas da China sobre a Austrália, após esta ter pedido uma investigação sobre as origens da covid-19, que motivaram Camberra a costurar a aliança. O foco nas forças navais é consequente. A China foi o país que mais incrementou suas Forças Armadas nesta geração, especialmente sua Marinha, com vistas à anexação de Taiwan e à hegemonia no oeste do Pacífico.

Não surpreende que o Aukus tenha sido bem recebido por países como a Índia – que no ano passado se chocou com a China no Himalaia – e o Japão – que disputa territórios no Pacífico. Vietnã, Filipinas e Coreia do Sul também sentiram o aumento das pressões chinesas nos últimos anos. Esses países são aliados atuais ou potenciais dos EUA. Nesta semana, o país recebe a cúpula do Quad – a aliança com Austrália, Índia e Japão. São passos que marcam a transição inexorável das prioridades geopolíticas americanas do Atlântico para o Pacífico.

O anúncio é conveniente para a administração Biden, que, após a saída caótica do Afeganistão, tenta virar a página das guerras de ocupação no Oriente Médio. Quão importante é o foco no Indo-Pacífico fica claro ante os previsíveis efeitos colaterais que os americanos se dispuseram a assumir.

Um deles é o abalo nos esforços de não proliferação nuclear. Os submarinos não conterão arsenal nuclear, mas serão movidos a energia nuclear, uma tecnologia que até então os EUA só haviam transferido ao Reino Unido. Há pouco receio de que a Austrália se disponha a enriquecer urânio e muito menos construir bombas. Mas países que flertam com essa possibilidade, como a Coreia do Sul ou o Irã, podem se considerar legitimados a avançar seus programas nucleares.

Mais marcante é o abalo nas alianças europeias. A França, que perdeu um contrato naval multibilionário com a Austrália, diz ter levado uma “facada nas costas” e reforçou seus apelos por uma “autonomia estratégica” europeia em relação aos EUA. A Otan, que já foi desmoralizada pelas decisões unilaterais dos EUA no Afeganistão, deve enfrentar uma crise existencial ante a transição axial do seu maior líder e financiador para o Pacífico.

Claramente, os americanos consideraram que valia a pena abrir algumas fissuras nas alianças ocidentais no Atlântico para mostrar solidez nas alianças ocidentais no Pacífico. Para a China, é um sinal de que está se concretizando o seu maior temor: a multilateralização das alianças americanas na região. O novo foco dos EUA no Pacífico é inevitável. Mas a política externa americana, tão volúvel nos últimos anos, precisará tratar das feridas abertas, sob pena de expor seus antigos aliados e o resto do mundo à estratégia chinesa de dividir e conquistar.

Inflação subestimada

Folha de S. Paulo

Descrédito da política econômica no mínimo tende a encarecer controle dos preços

Projetava-se, em janeiro, que a inflação deste ano ficaria em torno de 3,3%, e patamar semelhante era esperado para os juros do Banco Central. Hoje, previsões para IPCA e Selic rondam os 8,5%, em indicativo eloquente do enfraquecimento da política econômica.

Na quarta-feira (22), o BC elevou sua taxa em 1 ponto percentual, para 6,25%, e indicou que prosseguirá no aperto monetário; não é improvável que o processo tenha continuidade em 2022. O país se desgarra, assim, do padrão de relativa normalidade dos últimos três anos.

Entre 19 grandes economias do mundo, o Brasil deve registrar a terceira maior inflação neste 2021, atrás apenas da irremediável Argentina (47%) e da Turquia (17,8%), conforme levantamento da Organização para a Cooperação de Desenvolvimento Econômico (OCDE). Trata-se, mostram os dados, de um problema doméstico.

É fato que houve uma alta global dos preços de produtos primários de exportação, mas no Brasil o fenômeno teve seu efeito amplificado pela desvalorização aguda da moeda nacional e pelas incertezas quanto à solidez das contas públicas —fatores diretamente ligados a ações do governo Jair Bolsonaro.

Adicionalmente, houve quebra de safras agrícolas e a crise hídrica, que encareceu a energia elétrica e ameaça levar ao racionamento.

O IPCA teve variação acumulada de 9,68% nos 12 meses encerrados em agosto. Neste século, esse índice de preços ao consumidor chegou aos dois dígitos em apenas duas ocasiões, ambas em meio a grande tensão política e econômica: em 2002-2003, na virada do governo tucano para o petista, e 2015-2016, na derrocada de Dilma Rousseff.

Não se pode subestimar, portanto, a gravidade da escalada inflacionária e seu impacto sobre o bem-estar das famílias e os humores do eleitorado. Conforme a pesquisa Datafolha deste mês, 69% dos brasileiros consideram que a situação econômica do país piorou nos últimos meses, e 53% dizem que sua própria situação se deteriorou.

Há grande perigo quando o governo perde capacidade de conduzir as expectativas de consumidores, empresários e investidores —e um ano de eleições tende a ser um complicador. As projeções do mercado para o IPCA de 2022 estão em alta e já rondam 4,1%, acima da estimativa do BC (3,7%) e da meta fixada para o período (3,5%).

No mínimo, o descrédito da política econômica torna mais custoso, na forma de juros maiores e desemprego, o controle dos preços. Na pior hipótese, chega-se à trágica combinação de inflação elevada e retração da atividade.

Mais um tribunal

Folha de S. Paulo

Sem alarde, Congresso amplia a estrutura do já caríssimo Judiciário brasileiro

O Judiciário brasileiro, possivelmente o mais caro do mundo, está perto de ganhar mais cargos e repartições. O Senado aprovou, na quarta-feira (22), projeto que cria o Tribunal Regional Federal da 6ª Região, com jurisdição em Minas Gerais, dependente agora apenas da sanção presidencial.

Em um único dia, o texto passou pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e teve votação simbólica —sem contagem— no plenário, num sinal de que a resistência à proposta, se havia, era irrisória. Em agosto do ano passado, a Câmara também disse sim ao novo TRF-6 sem que os deputados favoráveis tivessem de se identificar.

A tramitação é suave, nota-se, quando há um acordo de elevadas autoridades em prol da expansão da máquina estatal e dos interesses de suas corporações. O projeto, de 2019, é da lavra do então presidente do Superior Tribunal de Justiça, o mineiro João Otávio de Noronha, que cultiva boas relações com o presidente da República.

Previsivelmente, a criação do tribunal contou com o apoio decidido do mundo político de Minas, aí incluído o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM). Nas duas casas legislativas, o texto foi relatado por parlamentares do estado.

O intervalo de pouco mais de um ano entre as duas votações não se deveu a complexos debates internos ou acaloradas audiências públicas. Ao contrário, a matéria avançou com o menor alarde possível, sem que suas motivações tenham gerado maior repercussão.

Justifica-se o novo tribunal com a necessidade de reduzir a sobrecarga do TRF-1, com sede em Brasília, que hoje atende o Distrito Federal e 13 estados, entre eles Minas Gerais, e será desmembrado.
A preocupação é pertinente, mas não está claro como a medida contribuirá para o desafogo da corte brasiliense sem, como prometem seus defensores, elevar gastos.

O Judiciário consome 1,5% do Produto Interno Bruto brasileiro, patamar que os estudiosos Luciano da Ros e Matthew MacLeod Taylor não encontraram em nenhum outro país —o padrão nas Américas e na Europa são despesas inferiores a 0,6% do PIB com esse Poder.

Esse padrão perdulário, que não foi interrompido pela severa crise orçamentária do setor público nos últimos anos, decorre do gigantismo de suas estruturas e das remunerações descoladas da realidade nacional, associadas a privilégios descabidos como férias de dois meses para os magistrados.

Acredite quem quiser que tantas forças políticas se mobilizaram por um novo tribunal que sairá a custo zero para os contribuintes.

BC não descarta inflexão da inflação ao longo do ciclo

Valor Econômico

Para a maior parte das causas da inflação atual os juros são instrumentos menos eficientes

O Banco Central deve ampliar o aperto monetário, que deverá se estender até o começo do próximo ano. O Comitê de Política Monetária elevou pela quinta vez a taxa Selic, para 6,25%, e considera empurrá-la até 8,5%, caso o cenário inflacionário não piore. “Neste momento, o cenário básico e o balanço de riscos do Copom indicam ser apropriado que o ciclo de aperto monetário avance no território contracionista”. Um novo aumento de 1 ponto percentual está nos planos da reunião de outubro do Copom.

A persistência da inflação não deixa muita margem de manobra ao BC. Pela terceira reunião consecutiva observa-se que as “diversas medidas da inflação subjacente estão acima do intervalo compatível com o cumprimento das metas para a inflação”.

Dois pontos chamam a atenção no comunicado do Copom. O primeiro deles é que no cenário básico, que considera as estimativas do boletim Focus, para uma mesma taxa de juros, 8,5%, e partindo do mesmo câmbio (R$ 5,25) a inflação calculada pelo BC está bem mais perto da meta de 3,5% para 2022 que a projetada pelos participantes da pesquisa - 3,7%% e 4,1%. O segundo é que o novo ritmo de aumento de 1 ponto percentual é considerado adequado não só porque poderá garantir a convergência da inflação para a meta como, “simultaneamente, permitir que o Comitê obtenha mais informações sobre o estado da economia e grau de persistência dos choques”.

A observação é importante porque indica que o BC conta com a possibilidade de reversão da trajetória da inflação a curto prazo e, além disso, desaconselha apostas mais ousadas de investidores que projetam boas chances de a Selic chegar à casa dos dois dígitos. Sem deterioração adicional do front inflacionário, essa possibilidade é baixa.

Essa avaliação tende a resguardar realismo diante da eficácia da política monetária diante de choques de preços provenientes em boa medida de gargalos na oferta e não de desequilíbrios importantes na demanda, e menos ainda de excesso de demanda. A alta nos preços dos bens industriais ganha impulso com a falta de insumos decorrente de distúrbios nas cadeias de produção globais e um impacto de custos forte, propiciado também pela elevação dos preços das commodities sem que o movimento natural de apreciação do real tenha ocorrido. É um problema semelhante ao relatado pelo Fed em sua reunião, anteontem, com a diferença de que os EUA estão com falta de mão de obra e aqui o desemprego é muito alto.

A regularização das cadeias de produção, ao que tudo indica, só se dará em 2022, logo não é razoável supor alívio decisivo na inflação dos bens industriais. O preço da energia deu um salto e as condições climáticas desfavoráveis, que podem levar a um racionamento, não permitem qualquer otimismo. Aumentos expressivos de energia e combustíveis são fatais para a generalização das mudanças nos níveis de preços.

Restam as cotações das commodities, o câmbio e, sob influencia dos dois, o dos preços de alimentos e matérias primas. Houve reversão das apostas quase unívocas do mercado em inflação abaixo da meta até meados de 2020, quando as cotações das commodities desabaram e a Selic atingiu 2%. Em seguida, houve movimento contrário que parece de novo automático - o estouro da inflação e juros. Mas uma nova reviravolta não seria improvável, apesar da força da inércia. As cotações das commodities estão refluindo, reflexo do fato de que o pico da recuperação das economias desenvolvidas (EUA e Europa), e talvez da China, ficou para trás.

O Relatório de Inflação de junho trouxe estimativas do que aconteceria com a inflação se os preços das commodities retornassem ao nível do último trimestre de 2019, antes da pandemia - as agropecuárias subiram 25% desde então até junho deste ano e as metálicas, 50% - com o dólar mantido perto da cotação atual. A inflação de 2022 seria de 3,1%, 0,4 ponto menor. No caso de um recuo do dólar, a queda da inflação seria de pelo menos o dobro. Em um recuo combinado de ambos, o triplo.

Com o início do calendário eleitoral, teme-se pelo pior no câmbio, mas sua estabilidade por algum tempo com queda nas commodities reverteria a direção da inflação e exigiria menos juros e menor sacrifício do crescimento. Para a maior parte das causas da inflação atual os juros são instrumentos menos eficientes - doses maiores para resultados menores. A deterioração das expectativas de crescimento em 2022 é motivo essencial para calibrar bem, a toda hora, a necessidade de aumento de juros.

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