O Estado de S. Paulo
A desigualdade econômica tem efeitos que alcançam outras esferas da vida social
Já é assunto no Brasil a polarização entre
Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro na disputa pela Presidência da
República no ano que vem. Atropelando a pandemia, o eventual impeachment de
Bolsonaro e as articulações da chamada terceira via, essa discussão encobre uma
outra, não menos importante, polarização.
Trata-se da distância entre ricos e pobres
no Brasil. De acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano para América
Latina e Caribe, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud),
os países da região são presas de uma armadilha que combina alta desigualdade e
baixo crescimento, num círculo vicioso que limita a capacidade destes países de
favorecer o desenvolvimento humano de seus habitantes.
Lê-se neste relatório, publicado no fim do semestre passado, que, no ano de 2019, os 10% mais ricos do Brasil detinham 57% da renda nacional; o 1% mais rico detinha 28%, atrás apenas dos chilenos e dos mexicanos na comparação entre dez países latinoamericanos.
Esses dados sobre a disparidade de renda no
País provavelmente atrairiam menos atenção se na nossa sociedade não houvesse
pessoas pobres, ou se essas pessoas contassem com meios efetivos de deixar a
pobreza. De fato, numa sociedade sem pobreza, a desigualdade de renda não
causaria o mesmo impacto. Daí o argumento de que o combate à pobreza é mais importante
do que o combate à desigualdade.
Mas é preciso notar que a desigualdade
econômica tem efeitos que alcançam outras esferas da vida social. Como destaca
o Relatório de Desenvolvimento Humano do Pnud, a desigualdade de renda acentua
a concentração de poder, o que pode distorcer a elaboração de políticas
públicas ao ponto de perpetuar os padrões de desigualdade existentes e ainda
reprimir a produtividade.
Desigualdade de renda gera desigualdade de
influência. Como escreveu o professor Adam Przeworski, as pessoas não são
politicamente iguais em sociedades economicamente desiguais. Quando grupos
organizados competem por influência política, o poder econômico é transformado
em poder político, e este poder, por sua vez, torna-se meio para o poder
econômico (Why bother with elections?).
É possível sustentar que essa dinâmica se
faz presente nas discussões sobre a reforma administrativa, objeto da Proposta
de Emenda à Constituição (PEC) n.º 32. A proibição de benefícios como as
promoções e progressões baseadas exclusivamente no tempo de serviço, as férias
de mais de 30 dias, a aposentadoria compulsória como modalidade de punição,
prevista na PEC 32, pode não ser aprovada em virtude da oposição de grupos
organizados e bem representados no Congresso Nacional.
A concessão dos benefícios acima, além de
contestável por si só, ainda compromete a capacidade financeira do Estado,
inclusive para prover serviços básicos às pessoas que dependem dele para obter
esses serviços. Reforça-se, com isso, a desigualdade.
O mesmo ocorre no campo tributário. Nossa
elevada tributação sobre o consumo recai majoritariamente sobre as pessoas mais
pobres. O Imposto de Renda das pessoas físicas onera proporcionalmente menos os
indivíduos do topo da distribuição de renda. Por outro lado, somos
especialmente generosos na concessão de benefícios e regimes especiais
tributários a setores ou sujeitos específicos.
A excessiva desigualdade de renda presente
no Brasil fabrica mundos distintos dentro do País; mundos em que são diversas
as escolas, as expectativas, as prioridades, os hospitais, os meios de
transporte, o entretenimento dos seus habitantes. Neste cenário, como conciliar
diferentes interesses em nome do bem coletivo? Como garantir a igualdade de
oportunidades ou mesmo a igualdade perante a lei?
A desigualdade econômica, portanto, é um
fenômeno que tem várias causas e consequências. Ela repercute sobre as
políticas públicas, a participação política, a administração pública, e põe
novamente em questão o papel do Estado brasileiro.
A discussão desse papel divide a opinião
pública nacional. Parte dela defende a redução das funções do Estado ao mínimo
possível, como forma de combater sua ineficiência, sua gastança e sua
burocracia.
Mas a persistência das desigualdades e
distorções comentadas acima chama a atenção para um outro aspecto, que não toca
o tamanho do Estado, mas a ocupação dele. Em um artigo de 1982 em O Estado de
S. Paulo, dizia José Guilherme Merquior: “Ao contrário do que pretende a
vulgata neoliberal e comunitarista, o problema político brasileiro não é
nenhuma hipertrofia do Estado. É, isso sim, a persistência de formas
patrimonialistas desse Estado. O mal não é o Estado em si, porém certas formas
de apropriação do estado” (Sociedade civil: mito e realidade).
Ou seja, por trás de um Estado gastador mas pouco efetivo, que compromete a prestação dos serviços públicos e alimenta as desigualdades, há um Estado seletivo, que é apropriado por pequenos grupos financiados por todos nós.
*Doutor em Direito pela USP e pela Università
Degli Studi di Torino (Itália), integrante do Instituto Norberto Bobbio, é
professor da Facamp
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