O Globo
Não bastam desemprego e inflação, fome e
miséria, distribuição errática de vacinas e má gestão do programa de
imunização, evasão escolar e feminicídios, desmatamento e crise hídrica,
racismo e violência policial. Preocupam — e muito — os indicadores de morte e
invalidez por acidentes de trânsito, principalmente entre motociclistas, e a
estruturação do sistema de saúde para atender os que sobreviveram com sequelas
à Covid-19. Tal como o dólar, a taxa básica de juros, as mentiras do
presidente, o rol de mazelas nacionais negligenciadas só faz crescer.
Nesta semana, duas instituições públicas se ocuparam de um par de problemas. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) publicou edição especial do boletim Radar, em atenção à Semana Nacional do Trânsito. Lembrou que o Brasil é quinto no ranking global de vítimas, atrás somente de Índia, China, EUA e Rússia. Aqui, a taxa de mortes é de 22 por 100 mil habitantes; um terço dos óbitos em ocorrências com moto. Até a pandemia, o país contabilizava, por ano, cerca de 40 mil mortes e 300 mil casos de lesões graves em acidentes com transportes terrestres. O total de mortos caiu para 30 mil com a supressão de viagens em decorrência das medidas de isolamento social, mas pode voltar a subir “de forma incontrolável e persistente” com a flexibilização das atividades, alerta o técnico Carlos Henrique Carvalho.
A Fiocruz, num Observatório Covid-19
Extraordinário, ao mesmo tempo que atestou “de forma indubitável a melhora do
quadro pandêmico”, chamou a atenção para a necessidade de a Saúde se organizar
para responder aos sintomas de longo prazo da doença: “Manifestações
pulmonares, hematológicas, cardiovasculares, neuropsiquiátricas, renais,
endócrinas, gastrointestinais, hepatobiliares e dermatológicas vão sendo
caracterizadas, demandando a necessidade de fortalecimento da atenção primária
para maior capacidade resolutiva, em articulação estreita com clínicas
especializadas, não se devendo esquecer que a atenção especializada tem sido historicamente
um ‘gargalo’ no SUS”. Os pesquisadores também defenderam imunização acelerada e
ampliada, passaporte vacinal como proteção coletiva e incentivo à vacinação,
continuidade das medidas de proteção, como uso de máscara e distanciamento. É
tudo a que Jair Bolsonaro, após 18 meses de pandemia, ainda resiste.
O Ipea investigou correlações entre
acidentes de transportes terrestres e território, nível de remuneração,
contingente policial. As mortes por acidentes de moto aumentam em cidades com
vocação rural e nas localidades mais pobres, em razão da preferência da
população pelo veículo mais barato. Cada ponto percentual a mais no total de
domicílios com motocicleta adiciona quatro mortes à taxa por 100 mil
habitantes. Ganhos de renda elevam a probabilidade de ocorrências graves,
porque multiplicam deslocamentos e viagens. Mais fiscalização e rigor em regras
de habilitação e trânsito, por sua vez, preservam vidas.
No artigo dedicado à pandemia, Ernesto
Galindo e Roberto Pavarino Filho identificaram padrões que sugerem agravamento
das já alarmantes estatísticas de morte e invalidez por acidente de trânsito.
Para cada óbito por acidente de carro no Brasil, duas pessoas ficam inválidas;
com moto, dez. Nos meses de maior restrição de atividades, em 2020, os deslocamentos
no país diminuíram entre 60% e 80%; o transporte coletivo, mesmo após a
flexibilização, viu a demanda cair entre 20% e 40%. Com isso, o total de
acidentes com ônibus despencou à metade; com pedestres, 27,7%; com automóveis e
ciclistas, 13%.
No caso das motos, as vendas cresceram 3%
no primeiro ano da pandemia, praticamente repetindo o ritmo anual das últimas
duas décadas, enquanto os acidentes caíram 7,5%, bem menos que nas demais
modalidades. É resultado tanto do aumento do trabalho de entregadores quanto da
procura por transporte individual barato, também para fugir de aglomerações em
ônibus, trens e metrô.
O arrefecimento da pandemia, portanto, tem
à espreita um par de desafios nada triviais. Para completar, violência no
trânsito e enfrentamento à Covid-19 longa convergem também por razões
orçamentárias. No primeiro ano de mandato, Bolsonaro pôs fim ao DPVAT, tributo
criado para indenizar vítimas de acidentes (50%), financiar o SUS (45%) e
programas de educação para o trânsito (5%). O último repasse ao sistema público
de saúde foi de R$ 4,5 bilhões, informou Erivelton Pires Guedes, técnico de
planejamento e pesquisa no Ipea. Neste ano, o imposto já não foi cobrado. É
perda de receita importante num momento de contas públicas estranguladas e, por
onde se olhe, gastos crescentes com saúde.
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