Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Movimento estimula investidor a aplicar R$
100 em CRA, com juros de 5,5% ao ano por cinco anos; recursos serão aplicados
em sete cooperativas de assentamentos de reforma agrária
A notícia de que o MST - Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra captara no mercado de capitais R$ 17,5 milhões
causou surpresa a quem, durante quase 40 anos, engoliu as satanizações que
definiam o MST como comunista, invasor de terras e violador do direito de
propriedade. Uma captação já fora feita no ano passado.
O MST é historicamente a negação desses
atributos. É também a negação do modelo brasileiro de capitalismo, antissocial,
predatório e autoritário. Sua grande luta social tem sido contra a usurpação de
terras pelo latifúndio improdutivo, rentista e especulativo, até mesmo não
legitimadas pela cadeia dominial nem pela legislação de reforma agrária do
regime militar.
Concebido por uma equipe coordenada pelo general Golbery do Couto e Silva, o Estatuto da Terra, de 1964, reiterava a constitucional função social da propriedade e o direito de acesso à terra para quem nela vive e trabalha. Em tese, o golpe não fora dado para apoiar o latifundismo.
No governo Figueiredo, o general Danilo
Venturini, ministro de Assuntos Fundiários, promoveu uma consolidação das leis
agrárias brasileiras desde a Lei de Sesmarias portuguesa, de 1375, que
instituiu como fundamento do direito à terra o seu uso produtivo. A terra
improdutiva caía em comisso, tornava-se devoluta e era em consequência
concedida a quem a solicitasse para produzir.
Sobretudo a partir da Lei de Terras de
1850, condição para a proibição do tráfico negreiro, o Estado brasileiro abriu
mão do domínio eminente sobre as terras do país em favor do particular, criando
um anômalo regime de propriedade privada da terra.
A partir da República, o Estado tentou,
progressivamente, retomar o domínio sobre o território, até por motivo de
segurança nacional. Com o código de águas reestatizou o subsolo. Sem o que
nunca teria sido possível a prospecção estatal do petróleo. Depois, estabeleceu
limitações territoriais e de uso às terras de marinha, às terras indígenas, ao
patrimônio ambiental e histórico.
A consolidação promovida pelo general
Venturini tinha por objetivo restabelecer o trabalho na terra como fonte
primária do direito de propriedade. E não o documento, o papel passado, dada a
abundância de papéis falsificados em uso no crime de grilagem de terras, um
fator das tensões no campo.
Houve momento em que a soma total das áreas
descritas em documentos de propriedade, no estado do Mato Grosso, era o dobro
da área do estado.
O MST legitimou suas ações de ocupação de
terras no direito alternativo e reprimido que decorria das brechas no mau uso
da terra e das fraudes no direito de propriedade. Reivindicou sistematicamente
a realização da reforma agrária nas terras irregularmente sonegadas à função
social que a Constituição e as leis previam e recomendavam.
A luta do MST pela reforma agrária, até
pela ocupação das terras vulneráveis aos dispositivos legais que preconizam a
reforma, foi o modo de acelerar a redistribuição da terra improdutiva a quem
dela carecia e carece. Foi o modo de impedir a omissão do Estado no dever da
reforma.
Com base na tradição e no capital social
representado pelas habilidades históricas dos trabalhadores da agricultura, em
seu rico saber tradicional e em sua criatividade, o MST mobilizou os sem-terra
em favor de uma economia alternativa, uma economia moral que faz da reforma
agrária reforma econômica e socialmente modernizante, até esta sofisticação do
recurso ao mercado de capitais. Pela nova iniciativa, o MST estimula o pequeno
investidor a aplicar R$ 100 em certificado recebível do agronegócio (CRA), com
juros de 5,5% ao ano por cinco anos.
Esses recursos serão aplicados em sete
cooperativas de assentamentos de reforma agrária nos estados do Rio Grande do
Sul, de Santa Catarina, do Paraná, de São Paulo e do Mato Grosso do Sul.
São cooperativas de produtores da chamada
agricultura familiar e comunitária, inspiradas numa economia agrícola de valor
agregado e em valores sociais da economia moral.
Produzem desde arroz, feijão, hortaliças,
milho, soja até leite, achocolatados, queijos, iogurtes, requeijão, manteiga,
açúcar mascavo, cachaça, melado de cana. O MST é hoje o maior produtor de arroz
orgânico da América Latina. Uma dessas cooperativas produz sementes não
transgênicas certificadas pelo Ministério da Agricultura e pela Fundação
Prosementes para produtos valorizados no mercado internacional.
A economia moral do MST é de inspiração
cristã. O movimento nasceu da Pastoral da Terra por iniciativa de católicos e
luteranos. Revaloriza a família e a comunidade, hoje profundamente ameaçadas
pela economia do lucro pelo lucro sem compromisso com a função social da
propriedade.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Linchamentos - a justiça popular no Brasil” (Contexto).
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