Valor Econômico
A definição da meta de inflação no Brasil
funciona como se fosse uma espécie de roleta russa tupiniquim
Ao contrário do que se faz crer, a inflação
não é um fenômeno homogêneo único nem autônomo. Tem características próprias
que podem variar em momentos distintos de uma mesma economia, sem ignorar que
não é passível de ser comparada entre países.
A retomada da inflação imediatamente pós
pandemia foi praticamente universal e os motivos são fartamente conhecidos.
Hoje, as taxas de juros praticadas pelos bancos centrais variam muito em termos
nominais, mas têm se mantido, em média, ao redor de 2% em termos reais (depois
de descontada variação dos índices de preços).
Nos países em desenvolvimento, a
discrepância é maior. Há juros reais praticados por bancos centrais no patamar
de 6% e 5%, em especial na América Latina.
O Brasil, sabe-se, é uma exceção. Não só a taxa de juro real de curto prazo é a mais alta do mundo, como continua a aumentar. Esta é uma constatação irrefutável, concorde-se ou não com a atuação da autoridade monetária brasileira. Pior é que a despeito de manter por dez meses seguidos o juro de curto prazo ao nível de 13,75%, o BC não conseguiu até agora trazer a inflação para a meta de 3,5% fixada para 2023.
O IPCA fechou maio em 0,23%, acumulando
variação positiva de 3,94% no acumulado de 12 meses. Isso significa que hoje o
juro real de curto prazo no Brasil está em 9,44% ex-ante, ou seja,
considerando-se o índice divulgado até aqui.
Há, a rigor, peculiaridades muito
específicas no comportamento da inflação do país que merecem ser consideradas
não apenas com respeito ao nível dos juros, mas principalmente na determinação
da meta de inflação. Nenhuma delas é novidade, apenas têm passado ao largo das
discussões mais recentes.
Primeiro ponto a ser levado em conta é o
grau de rigidez da inflação brasileira. Sabe-se que a economia brasileira roda
com uma participação ainda significativa de indexação. O Plano Real, perto de
comemorar o seu 29º aniversário, conseguiu acabar com o reajuste automático dos
salários, que representam cerca de 70% da renda, mas não foi capaz de extinguir
a cultura do reajuste pela variação inflacionária de outros contratos, como o
de aluguel, por exemplo, e até de alguns tipos de serviço.
Um exemplo característico foi anunciado
ontem, com a decisão da ANS (Agência Nacional de Saúde) de autorizar o aumento
anual de até 9,63% nos planos de saúde a partir deste mês. Os preços dos
remédios também foram recentemente reajustados. Tarifas como as de energia
elétrica, água e transporte público aumentam em linha com a inflação. Já os
combustíveis são majorados através de fórmulas específicas atreladas aos preços
do mercado internacional. Em nenhum desses casos a política monetária do Banco
Central tem qualquer influência. Quando a inflação é ascendente, aqueles preços
mudam para mais não importa qual seja o nível de juros fixado para a Selic, a
taxa do BC.
Estima-se que cerca de 23% do IPCA seja
composto por produtos e serviços passíveis de sofrerem reajuste total ou
parcial pela variação da inflação passada. São conhecidos como preços
“administrados”, cujos aumentos são denominados pelo BC na categoria inercial.
A rigor, trata-se da velha indexação pura e simples.
Segundo ponto a ser tratado diz respeito à
meta da inflação. Há aqui uma relação com os parágrafos acima, uma vez que
estão atrelados uns aos outros. Com praticamente um quarto do IPCA amarrado à
inflação passada, a definição da meta de inflação no Brasil funciona como se
fosse uma espécie de roleta russa tupiniquim. Qualquer tipo de catástrofe
interna ou externa que afete os preços em geral para pior terá um efeito
multiplicador maior na inflação brasileira pelo alto grau de rigidez observado
no IPCA, o índice que serve de referência para a meta de inflação.
Neste sentido, pode-se dizer que a variação
dos preços dos chamados produtos e serviços “administrados” nunca recua. Fica
onde está ou aumenta. Aqueles itens só teriam condições de contribuírem
positivamente para o IPCA se os preços em geral dos bens considerados livres
(não passíveis de reajustes fixados a priori ou vinculados à inflação) se
estabilizassem em zero ou menos do que zero.
É difícil saber em que ponto a inflação
brasileira se torna totalmente insensível aos efeitos do aumento da taxa de
juros. Seria no nível de 2%? De 3%? De 4%? Exigiria um exercício com inúmeras
hipóteses, mas não se supõe impossível de ser realizado. Ajudaria imensamente
na definição de uma meta factível de ser atingida e evitaria equívocos como o
de junho de 2021, quando o governo decidiu fixar em 3% a meta de inflação para
2024 e 2025. Uma decisão absolutamente aleatória, difícil de ser cumprida.
Naquela altura, os preços em geral no mundo
ainda estavam relativamente contidos antes de explodirem inesperadamente nos
meses seguintes, no rastro de uma demanda que tinha acabado de sair da
quarentena.
Na próxima reunião do Conselho Monetário
Nacional, prevista para o dia 29 deste mês, espera-se que alguma decisão
sensata venha a ser tomada com respeito à meta de inflação. O ideal e mais
lógico é que a meta para os próximos dois anos seja ampliada para no mínimo
3,5% e que este seja o nível fixado para os anos posteriores.
Fala-se na mudança da forma como a meta é
definida em termos temporais. Hoje, utiliza-se o ano calendário de modo que o
nível de inflação fixado pelo CMN deve ser atingido no fim de dezembro de cada
ano. Alternativamente, estuda-se o abandono da definição do prazo a favor de
uma meta atemporal, como ocorre nos países desenvolvidos, uma espécie de meta a
perder de vista.
Gente do mercado tem defendido o uso do
chamado “core” da inflação para efeito de fixação da meta. Isso excluiria os
itens mais sujeitos às variações extemporâneas de preços, como os combustíveis,
mas não faria muito sentido em uma economia ainda tão indexada como a
brasileira. Até que o CMN aconteça, espera-se um amadurecimento no debate em
torno da meta de inflação, com mais racionalidade e menos parcialidade.
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