Folha de S. Paulo
Ex-premiê morre como cofundador da tradição
que dominou discurso político na Turquia, no Brasil, na Índia e nos EUA
O ex-líder de uma grande democracia que
usou seus bilhões para adquirir vasta influência política, possuía capacidade
surpreendente para utilizar a mídia em busca de mudar sua cultura, era infame
por uma sequência de casos sexuais sórdidos, foi processado múltiplas vezes e
enfraqueceu o Estado de Direito por não respeitar os limites constitucionais de
seu próprio poder, personalizando o conflito político até que o país pareceu
ficar dividido entre apoiadores e adversários, morreu
nesta segunda-feira (12).
Não, o nome do falecido não é Donald Trump –é Silvio
Berlusconi.
Quando Berlusconi ingressou na política
italiana, na esteira de um grande
escândalo de corrupção que no início da década de 1990 pulverizou os partidos
políticos italianos que duravam havia anos, observadores externos o
encararam com um misto de preocupação e perplexidade. Com atitude machista e
piadas sexistas, passado de crooner em navios de cruzeiro e presente de
mulherengo inveterado, ele parecia um personagem anacrônico: um membro do
elenco de uma ópera-bufa do século 18 que se transportara de alguma maneira
para o final do século 20 e agora estava representando um ato extenso de arte
cênica.
Durante a primeira década de sua ascensão política, a cobertura de Berlusconi pela mídia internacional tendeu a tratá-lo como uma figura ao mesmo tempo retrógrada e especificamente italiana. A ideia de que ele pudesse ser o precursor de coisas que viriam a acontecer fora da Itália parece nunca ter passado pela cabeça de correspondentes estrangeiros que descreviam os escândalos do então primeiro-ministro em despachos espirituosos em jornais como Le Monde ou The New York Times.
Mas, apesar da influência profunda que o
passado da Itália continua a exercer sobre o país, e não obstante todas as
formas que sua cultura pode parecer antiquada no dia a dia, o país possui um
longo histórico de prever o futuro político. As cidades-estado da Itália
medieval mostraram ser a ponte crucial entre as tradições democráticas do mundo
antigo e as novas tentativas de autonomia coletiva lançadas por alguns rebeldes
intrépidos nas distantes colônias britânicas da América do Norte no final do
século 18.
Depois, os
discursos incendiários e cheios de ódio de um homem baixo e robusto chamado
Benito Mussolini –que também pareceram, num primeiro momento, algo
saído de uma ópera-bufa— serviram de inspiração para emuladores ainda mais
perigosos na Alemanha e além. A Itália com frequência mostrou ser um
laboratório político imprevisto, e isso voltou a ocorrer após a ascensão de
Berlusconi.
Em retrospectiva, o efeito que Berlusconi
teve sobre a política italiana parece algo que já conhecemos bem. Ele chegou ao
poder explorando uma reação popular contra as falhas de instituições
existentes, profundas e genuínas. Seus inimigos sempre o subestimaram devido a
seu caráter tosco e grosseiro.
Ao evidenciar o desdém que sentiam por seus
seguidores, eles levaram um grande número de eleitores a apostar nele.
Berlusconi personalizou conflitos políticos de maneira magistral,
caracterizando-se como mártir político e se comparando a Jesus Cristo. E,
embora tenha constantemente descumprido suas promessas exageradas, dominando a
política italiana por duas décadas de estagnação econômica e declínio político,
conseguiu conservar a lealdade de um grande segmento da população.
Berlusconi chamou a atenção do mundo como
uma curiosidade bizarra. Seu maior triunfo não foi ter sido premiê da Itália em
três períodos, ter continuado senador até seu último dia de vida ou ter morrido
em liberdade e como uma das pessoas mais ricas do país, apesar de todos os
processos e condenações. É o fato de ter deixado este mundo como um dos
cofundadores de uma tradição política que, nas últimas décadas, acabou por
dominar o discurso político na Turquia, no Brasil, na Índia e nos EUA.
A influência de Berlusconi de fato começou
a diminuir em seus últimos dez anos de vida, primeiro lentamente e depois de
uma só vez. Sua última passagem como premiê chegou ao fim há pouco mais de uma
década, quando sua administração catastrófica das finanças públicas do país e a
falta de confiança dos mercados em sua capacidade de implementar reformas
sérias o levaram a perder o apoio majoritário no Parlamento. Seu partido, o
Força Itália –assim chamado, num gesto caracteristicamente descarado e astuto,
devido ao grito com que os torcedores de futebol italiano saudavam a seleção
nacional—, foi encolhendo continuamente, passando de 47% dos votos em 2008 para
8% em 2022.
Essa é a boa notícia: mesmo figuras
tremendamente influentes podem perder o domínio que exercem. Durante duas
décadas, o show de Berlusconi dominou a política e a sociedade da Itália. Então
o país se cansou de suas manobras. Hoje, ele era o líder de uma legenda que é
parceiro minoritário de um governo que, na maior parte do tempo, respondia às
suas exigências destemperadas com sorrisos insinceros.
Mas há más notícias também. Os últimos dez
anos, mais ou menos, sugerem que o fim de populistas como Berlusconi raramente
assinala a salvação pela qual anseiam seus detratores. A influência corrosiva
que ele exerceu é evidente; o fato de sua morte não deve levar comentaristas a
ceder à tentação de minimizar os danos que ele causou. Mas não significa que
sua morte vá ajudar a sanar a política italiana.
Os líderes remanescentes da direita
italiana, Giorgia
Meloni e Matteo
Salvini, podem ter menos conflitos de interesses econômicos ou menos razões
pessoais para serem favoráveis a um Judiciário fraco. Mas também têm um
compromisso ideológico muito mais profundo com a extrema direita e uma
apreciação pessoal ainda mais profunda por líderes como Viktor
Orbán ou, no caso de Salvini, Vladimir
Putin.
E isso faz parte de uma tendência mais
ampla. Berlusconi mostrou que, mesmo em democracias supostamente consolidadas,
os gradis que as protegem são muito mais fracos do que políticos e cientistas
políticos supunham. Ele continuou a ser um político profundamente personalista
cuja base de apoio vinha de seu carisma e que se preocupava sobretudo com seus
interesses pessoais.
Seus sucessores estão tão dispostos quanto
ele a manipular as regras ou a explorar seu carisma, mas muitos deles também
estão imersos em uma ideologia de extrema direita que lhes confere a aparência
de estar trabalhando para um propósito maior e que, se fosse implementada,
causaria danos ainda mais profundos. Berlusconi quebrou um modelo. É duvidoso
que as pessoas que estão no poder hoje poderiam reconstruir esse modelo, mesmo
que tivessem interesse em fazê-lo –coisa que decididamente não têm.
Na noite deste domingo, quando os rumores
da morte de Berlusconi começaram a circular nas redes sociais, eu jantava com
amigos italianos de longa data que há quase duas décadas se queixam da
influência de Berlusconi sobre seu país. "Diga o que quiser, será o fim de
uma era", disse um deles, soando surpreendentemente melancólico.
"Pode ser que a gente ainda acabe sentindo saudades dele", disse
outra. Fiquei espantado. "Vocês acham realmente que as coisas poderiam piorar?",
perguntei.
"As coisas sempre podem piorar",
respondeu ela alegremente, tomando outro gole de vinho.
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