Folha de S. Paulo
Vivemos uma realidade na qual nos movemos
como numa longa rua de numeração desordenada, mas lógica; uma espécie de
avenida 'Faria Lira'
Chegamos ao futuro em que todos são anônimos
só por 15 minutos. Mas são gerações muito diferentes convivendo e se expondo
nas redes: as tradicionais e as modernas, cada uma com seu "tempo
interior" não cronológico (Mannheim, a partir de Pinder) e sua comunhão de
percepções e demandas. Uma "contemporaneidade dos não coetâneos" (Ernst Bloch),
entrelaçados sobre o fosso que as mudanças cavam entre suas visões de mundo.
Germani e Di Tella usaram essa ideia nas rupturas dos anos 1930: industrialização, urbanização e comunicação de massa (rádio) geraram, ao lado de setores rurais, outros setores sociais e seu novo tempo, sua "revolução de aspirações" e sua percepção de "incongruência de status", dada a incapacidade institucional de atendê-las. Eram, fundamentalmente, os trabalhadores fabris (e a burguesia). Para os autores, o populismo autoritário latino-americano foi a incorporação estatal das camadas urbanas, em pacto das elites modernas (riquezas) com as antigas (verbas e posições).
Esse tema se enlaçou com o do
desenvolvimento. A literatura a respeito é vasta e tem ao menos dois cortes
importantes: o de Cardoso e Faletto, que articulam "dependência e
desenvolvimento" —e atraso—pela aliança entre burguesias interna e externa,
e a de Oliveira, com a "crítica à razão dualista", pela qual os
setores tradicionais eram funcionais para os dinâmicos, fornecendo-lhes mão de
obra barata e recursos das exportações primárias para a importação de bens de
capital e de consumo —e recebendo quinhões de orçamento e mando. São teses
centrais para entender o crescimento e a crise desde os anos 1930 até a ditadura
militar no Brasil.
Até que aí morreu
Tancredo Neves.
A articulação da dependência e do
desenvolvimento e dos setores modernos e tradicionais se manteve na
democratização (mas com as tensões do baixo crescimento econômico), elegeu e
modelou governos e, embora com avanços, manteve o país com lacunas na economia,
na política e nas relações sociais.
Eis que novas rupturas, comparáveis às dos
anos 1930, ocorrem neste início de século 21 na produção, na tecnologia, nos
grupos sociais, nos mundos interiores e na revolução de aspirações de novos
setores – completamente distintos dos patrões e operários arquetípicos da
peça "Eles
Não Usam Black-Tie" (Guarnieri). A incapacidade
institucional de atender às demandas novas e antigas (abraçadas sobre o fosso)
gera "incongruência de status" nos setores modernos —que reclamam nas
timelines ("Eles Só Fazem Brainstormings")– e rancor nos tradicionais
–excluídos do consumo ("Eles Não Vão à Black Friday")–,
ensejando talvez os recentes
populismos autoritários.
Mas cabe ver que os atuais contemporâneos não
coetâneos, com seus novos mundos interiores, seguem estreitamente articulados,
se autoalimentam (riquezas e mandos), produzem desenvolvimentos desiguais e
continuam moldando governos, sustentando-os e ameaçando-os.
Financeirização, fome, internacionalização,
clientelismo, tecnologia, fisiologismo, juntos, mantêm seu poder estrutural e
formam uma mesma realidade —na qual nos movemos, para a frente e para trás,
como numa longa rua de arquiteturas diversas, mas conjugadas, e numeração
desordenada, mas lógica.
Uma espécie de avenida "Faria
Lira".
Nenhum comentário:
Postar um comentário