quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Luiz Guilherme Piva - O tradicional e o moderno na economia e na política

Folha de S. Paulo

Vivemos uma realidade na qual nos movemos como numa longa rua de numeração desordenada, mas lógica; uma espécie de avenida 'Faria Lira'

Chegamos ao futuro em que todos são anônimos só por 15 minutos. Mas são gerações muito diferentes convivendo e se expondo nas redes: as tradicionais e as modernas, cada uma com seu "tempo interior" não cronológico (Mannheim, a partir de Pinder) e sua comunhão de percepções e demandas. Uma "contemporaneidade dos não coetâneos" (Ernst Bloch), entrelaçados sobre o fosso que as mudanças cavam entre suas visões de mundo.

Germani e Di Tella usaram essa ideia nas rupturas dos anos 1930: industrialização, urbanização e comunicação de massa (rádio) geraram, ao lado de setores rurais, outros setores sociais e seu novo tempo, sua "revolução de aspirações" e sua percepção de "incongruência de status", dada a incapacidade institucional de atendê-las. Eram, fundamentalmente, os trabalhadores fabris (e a burguesia). Para os autores, o populismo autoritário latino-americano foi a incorporação estatal das camadas urbanas, em pacto das elites modernas (riquezas) com as antigas (verbas e posições).

Esse tema se enlaçou com o do desenvolvimento. A literatura a respeito é vasta e tem ao menos dois cortes importantes: o de Cardoso e Faletto, que articulam "dependência e desenvolvimento" —e atraso—pela aliança entre burguesias interna e externa, e a de Oliveira, com a "crítica à razão dualista", pela qual os setores tradicionais eram funcionais para os dinâmicos, fornecendo-lhes mão de obra barata e recursos das exportações primárias para a importação de bens de capital e de consumo —e recebendo quinhões de orçamento e mando. São teses centrais para entender o crescimento e a crise desde os anos 1930 até a ditadura militar no Brasil.

Até que aí morreu Tancredo Neves.

A articulação da dependência e do desenvolvimento e dos setores modernos e tradicionais se manteve na democratização (mas com as tensões do baixo crescimento econômico), elegeu e modelou governos e, embora com avanços, manteve o país com lacunas na economia, na política e nas relações sociais.

Eis que novas rupturas, comparáveis às dos anos 1930, ocorrem neste início de século 21 na produção, na tecnologia, nos grupos sociais, nos mundos interiores e na revolução de aspirações de novos setores – completamente distintos dos patrões e operários arquetípicos da peça "Eles Não Usam Black-Tie" (Guarnieri). A incapacidade institucional de atender às demandas novas e antigas (abraçadas sobre o fosso) gera "incongruência de status" nos setores modernos —que reclamam nas timelines ("Eles Só Fazem Brainstormings")– e rancor nos tradicionais –excluídos do consumo ("Eles Não Vão à Black Friday")–, ensejando talvez os recentes populismos autoritários.

Mas cabe ver que os atuais contemporâneos não coetâneos, com seus novos mundos interiores, seguem estreitamente articulados, se autoalimentam (riquezas e mandos), produzem desenvolvimentos desiguais e continuam moldando governos, sustentando-os e ameaçando-os.

Financeirização, fome, internacionalização, clientelismo, tecnologia, fisiologismo, juntos, mantêm seu poder estrutural e formam uma mesma realidade —na qual nos movemos, para a frente e para trás, como numa longa rua de arquiteturas diversas, mas conjugadas, e numeração desordenada, mas lógica.

Uma espécie de avenida "Faria Lira".

 

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