Incúria fiscal deteriora cenário econômico futuro
O Globo
Mercado dá sinais de ter perdido a confiança
nas promessas de responsabilidade com contas públicas
A ata da última reunião do Comitê de Política
Monetária (Copom) do Banco Central (BC), divulgada nesta terça-feira, não
poderia ter sido mais explícita ao confirmar a pressão da política fiscal
expansionista nos juros. Foi essa uma das razões para o Copom ter elevado a
taxa básica, a Selic, em 0,25 ponto percentual, para 10,75% ao ano, na primeira
alta desde agosto de 2022. No mercado, a percepção de que a responsabilidade
fiscal é uma incerteza tem contaminado as expectativas.
Um termômetro disso são os juros futuros — indicador que mede a confiança dos agentes financeiros na perspectiva de estabilidade. Eles têm subido, assim como o dólar. Para definir o relaxamento no controle de gastos e o crescimento das despesas fora da meta, ao mesmo tempo que persiste o compromisso declarado do governo com os objetivos traçados pelo novo arcabouço, analistas cunharam a feliz expressão “matemágica fiscal”.
Graças à incúria do governo, o cenário
provável para o futuro próximo mistura pressão sobre a inflação, juros mais
altos e queda no crescimento econômico. A revisão do Orçamento de 2024 feita no
quarto bimestre e anunciada na semana passada reforçou a sensação de
descompromisso. Tudo somado, a contenção de despesas caiu de R$ 15 bilhões em
julho para R$ 13,3 bilhões. O governo zerou o valor do contingenciamento,
alegando maior arrecadação. Levando em conta a crise de credibilidade que
atinge a política fiscal, foi uma decisão temerária. Com o crescimento das
despesas obrigatórias, o valor dos bloqueios aumentou R$ 2,1 bilhões, mas ficou
abaixo da necessidade de corte de R$ 5 bilhões, segundo as expectativas. Ao
digerir a revisão, analistas sentiram um gosto amargo.
O presidente do BC, Roberto
Campos Neto, afirmou haver exagero na reação do mercado sobre os
efeitos da política fiscal. Pode até ser. Mas isso não exime o governo. Não
foram duas nem três as intervenções do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva em favor de mais gastos. Em declarações públicas, a confusão premeditada
entre os conceitos de despesa e investimento é uma constante. Não falta
criatividade para tentar driblar as regras fiscais e destinar recursos a
programas caros ao governo. A retirada de projetos e programas do cálculo
fiscal é tática recorrente. Aconteceu com o Pé-de-Meia no início do ano e
voltou a ocorrer com as mudanças previstas em Projeto de Lei para o
auxílio-gás. E novamente nas despesas destinadas a combater os incêndios. Não
admira que, mesmo mirando o limite inferior da meta fiscal, a equipe econômica
não passe confiança sobre suas decisões. Como reconheceu Campos Neto, o mercado
parece estar com “dúvidas em relação à transparência dos números fiscais”. Não
é para menos.
Respeitar os limites orçamentários é base de
toda boa política econômica. As tentativas de escapar dessa realidade acabam,
cedo ou tarde, criando problemas. Gastos extras aquecem a demanda
artificialmente, forçam o aumento do custo do dinheiro, limitam o crédito,
elevam os temores sobre a sustentabilidade da dívida pública, afetam
negativamente a taxa de câmbio, jogam os juros futuros para cima e inibem os
investimentos necessários para alavancar o crescimento. Prudência e uma meta
fiscal mais ambiciosa estão ao alcance do governo. Basta cumprir as promessas
de responsabilidade com as contas públicas.
STF deve assegurar com ressalvas direito de
recusar tratamento médico
O Globo
Negativa a transfusões pode ser aceitável,
mas é preciso resguardar interesses coletivos e de menores
O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF)
deverá retomar hoje o julgamento sobre o direito de recusar tratamento médico
com base em crenças religiosas ou pessoais. Os casos em julgamento decidirão se
dois pacientes cuja religião não permite transfusão de sangue — são testemunhas
de Jeová — podem pleitear que o poder público custeie cirurgias e outros
tratamentos sem o procedimento. A decisão terá repercussão geral e deverá ser
seguida em todo o país.
Os relatores, ministros Luís Roberto
Barroso e Gilmar Mendes,
defenderam que indivíduos devem ter direito a recusar o tratamento com base em
crenças religiosas, desde que a decisão seja tomada de modo livre e que tenham
sido informados das consequências médicas — em casos extremos, a falta de
transfusão em emergências pode acarretar a morte. “Os pacientes devem ter o
direito de fazer escolhas de acordo com suas opiniões e valores,
independentemente de quanto possam parecer irracionais, imprudentes e ilógicas
aos outros”, escreveu Mendes.
Barroso afirmou que, havendo tratamento
alternativo à transfusão — como técnicas para reduzir perda de sangue,
estimular a produção de células sanguíneas e gerenciar fluidos do corpo —, ele
deve ser assegurado pelo Estado. Os ministros Flávio Dino, Cristiano
Zanin e André
Mendonça, embora tenham acompanhado os relatores, sugeriram que
Barroso incluísse uma ressalva: a recusa só poderia ser manifestada em nome do
próprio paciente, mas não em relação a filhos menores de idade. A sugestão foi
acatada. Foi a decisão correta. Não faz sentido a saúde de crianças correr
risco maior em razão das crenças dos pais.
Isso, porém, não encerra a questão. É certo
que, como princípio, cada indivíduo deve ter a liberdade de decidir o que é
feito em seu próprio corpo. Mas há situações com impacto coletivo e custo para
toda a sociedade. É o caso da recusa a tratamento para doenças contagiosas ou,
para usar um exemplo recente de enorme alcance durante a pandemia, a tomar
vacina. Nessas situações, em nome da saúde pública, deve prevalecer o interesse
comum. O Estado deve dispor de meios razoáveis para coibir tais riscos e não deve
acatar qualquer recusa. O melhor guia para avaliar os impactos coletivos é a
ciência.
Também é fundamental que, nas situações em
que a recusa a tratamento seja permitida, os pacientes tenham sido informados
formalmente dos perigos que ela acarreta e isentem a equipe médica pelas
consequências de adotar um tratamento alternativo, que não necessariamente é o
mais adequado ou mais recomendado cientificamente.
Vários tribunais internacionais já julgaram
casos semelhantes aos que o STF enfrenta. O Tribunal Europeu de Direitos
Humanos condenou recentemente a Espanha a
indenizar uma paciente submetida a transfusão contra sua vontade. Ao reafirmar
os princípios da liberdade religiosa e da autonomia sobre o próprio corpo,
ressalvando casos que envolvem interesse coletivo ou de menores, os ministros
tomarão uma decisão compatível com o que se espera de uma democracia liberal.
Plano sobre agrotóxicos precisa de ordem e
rigor científico
Valor Econômico
A questão dos agrotóxicos é das mais
relevantes, por envolver a segurança alimentar da população
Um embate que já dura 25 anos entre
ruralistas e ambientalistas em torno da redução do uso de agrotóxicos volta a
emergir, e o presidente Lula foi chamado a intermediar a discussão. Lula
reclamou recentemente que 80% dos produtos proibidos na Alemanha podem ser
vendidos no Brasil, “como se fôssemos uma republiqueta de bananas”. Um
relatório divulgado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no
fim do ano passado informou que um em cada quatro alimentos de origem vegetal
no país apresentou resíduos de agrotóxicos proibidos ou acima do limite
permitido. Foram examinadas amostras de amendoim, batata, brócolis, café em pó,
laranja, feijão, farinha de mandioca, maracujá, morango, pimentão, quiabo,
repolho e farinha de trigo.
Ainda que os defensivos, como os ruralistas o
denominam, tenham tido um papel fundamental para a expansão da produção
agrícola, o avanço do conhecimento científico revelou os malefícios de seu uso
descontrolado, como ocorre no Brasil: chegam a matar seus usuários, causam
doenças graves e mutações genéticas, contaminam rios e lençóis freáticos e
destroem a natureza.
Uma das primeiras iniciativas para contê-los
e discipliná-los surgiu em 2013 no governo de Dilma Rousseff, com o lançamento
do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), que tinha como
pano de fundo a disputa pela sucessão presidencial de 2014, quando a hoje
ministra Marina Silva era candidata. O Planapo buscava incentivar a produção e
a distribuição de insumos orgânicos e de base agroecológica, fomentar a
conservação, o manejo e o uso sustentável dos recursos naturais, facilitar o acesso
do consumidor a informações relacionadas a esses produtos, e ainda incentivar a
agricultura familiar.
Fazia parte do Planapo o Programa Nacional de
Redução de Agrotóxicos (Pronara), elaborado em 2014, com 153 iniciativas na
primeira versão, entre as quais substituir agrotóxicos considerados
ultraperigosos, retirar os subsídios a esses produtos e introduzir uma taxação
progressiva. Mas ele não chegou a entrar em vigor porque a então ministra da
Agricultura, Katia Abreu, era contra.
A oposição a esse tipo de proposta ganhou
cada vez mais espaço. Em novembro de 2023, perto do fim do primeiro ano do
governo Lula 3, o Congresso aprovou a Lei dos Agrotóxicos - apelidada de PL do
Veneno pelos críticos e de PL dos Defensivos pelos seus defensores, entre eles
o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, que chegou a se licenciar do cargo
para reassumir o posto no Senado e votar a favor da lei. A nova legislação,
originada do Projeto de Lei 1.459, transformado em Lei 14.785 após 24 anos de
tramitação, busca agilizar a aprovação de licenças e de registro de novos
defensivos em até dois anos em comparação com os até dez anos então vigentes.
Um dos pontos mais controversos da nova lei é
a mudança de responsabilidades entre os órgãos do governo para aprovação dos
agrotóxicos. Anteriormente, ela era dividida entre a Agricultura, a Anvisa e o
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(Ibama). A Agricultura passou a decidir a liberação dos defensivos agrícolas,
relegando a Anvisa e o Ibama a segundo plano, de apoio técnico.
O texto segmenta os agrotóxicos em
“pesticidas” e “produtos de controle ambiental”, divisão que não existia. Como
era previsível, os pesticidas ficaram sob a alçada do Ministério da
Agricultura; e os de controle ambiental, com o Ibama, reduzindo o papel do
Ministério da Saúde e da Anvisa.
Em agosto passado, PT, Psol e Rede
protocolaram, ao lado da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e da
Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais
(Contar), uma Ação Direta de Inconstitucionalidade questionando a nova lei. A
petição argumenta que a lei “viola princípios constitucionais norteadores da
administração pública, como legalidade e eficiência, e direitos a um meio
ambiente ecologicamente equilibrado”.
Mas o principal sinal de que o embate
continua é a discussão em torno da tentativa de setores do governo de
ressuscitar a dupla Planapo e Pronara, apesar da oposição da Agricultura, dos
ruralistas e da indústria de defensivos. O relançamento do Planapo já foi
adiado quatro vezes. O Pronara pretende reduzir o uso dos produtos de maior
toxidade e risco ao ambiente e ampliar investimentos em bioinsumos.
O presidente Lula recebeu uma carta com
críticas ao comportamento da Agricultura e chamou reunião entre as partes. Na
versão do governo, o encontro terminou em consenso, e o novo Planapo, com o
Pronara, deverá ser publicado em breve. O problema da contaminação por
defensivos é sério e é preciso controlá-los com rigor. Legislativo, Judiciário
e Executivo fizeram um pacto em prol do ambiente, e é hora de ativá-lo. A
questão dos agrotóxicos é das mais relevantes, por envolver a segurança
alimentar da população. Há que colocar ordem e rigor científico na algazarra em
que se tornou a aprovação a toque de caixa e sem critérios de produtos
proibidos nos países desenvolvidos e vendidos sem controle no Brasil.
Diplomacia precisa se concentrar na crise do
clima
Folha de S. Paulo
Discurso equilibrado de Lula na ONU indica
caminho proveitoso, com menos atenção à ideologia derrotada de Celso Amorim
Quando assumiu o seu terceiro mandato, o
presidente Luiz Inácio Lula da
Silva (PT)
julgou que o mundo continuava a obedecer aos vetores da primeira década do
século 21, que permitiram uma fugidia exposição internacional relativamente
favorável de países com as características do Brasil.
Com a imodéstia que lhe é peculiar, o chefe
do governo brasileiro pôs-se a perambular pelo planeta, ao lado de seu assessor
para assuntos ideológicos Celso Amorim, com a firme convicção de que era um
iluminado destinado a desfazer os mais graves impasses geopolíticos. Deu com os
burros n’água reiteradamente.
Agora, perto de concluir a primeira metade de
sua terceira administração, Lula parece ter captado parte das transformações da
arena global, ou ao menos se acomodou ao statu quo pela via dolorosa da
tentativa e do erro.
Afinal, o líder petista não conseguiu nem
sequer afiançar eleições limpas na Venezuela,
vizinho do norte, depois de toda a bajulação à
ditadura de Nicolás Maduro. Vive às turras também com o vizinho
do sul, a Argentina, e nesse caso muito em razão da irascibilidade de Javier Milei.
Quem tem um desempenho sofrível como esse nas
linhas fronteiriças não deveria se atrever a resolver conflitos no Oriente Médio e
no leste da Europa.
Melhor cuidar da casa, que não vai bem.
O discurso de
Lula na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas reflete
esse ajuste algo sutil, mas perceptível, de ênfase.
A não ser pela omissão do descalabro
humanitário e político na Venezuela, a intervenção do presidente brasileiro foi
equilibrada quando abordou as guerras e mazelas globais, homenageando a melhor
tradição do Itamaraty.
Criticou o terrorismo do Hamas e
a reação desproporcional de Israel.
Condenou a invasão russa do território ucraniano e recomendou saída
diplomática.
Foram preâmbulos para o tema em que o Brasil
tem de fato potencial para fazer diferença no jogo internacional, que é o
enfrentamento da crise climática e a aceleração da transição para a economia de
baixo carbono.
Lula fez bem em não fugir das
responsabilidades pelo combate a emergências como os incêndios
florestais que agora dizimam porções da fauna e da flora nacionais e empesteiam
o ar respirado por dezenas de milhões de cidadãos.
Seu governo tem o que mostrar na redução do
desmate amazônico e no combate a atividades degradantes do ambiente como o
garimpo ilegal. Já o arremedo de plano de transição energética apresentado em
agosto deixa a desejar. Trata-se, na verdade, de um programa de incentivo ao
gás natural, um combustível fóssil.
De todo modo, é muito melhor que a diplomacia
brasileira e presidencial se concentre no tema da transição
verde, classificado corretamente por Lula na ONU de
"celeiro de oportunidades".
Do saco de ideias ultrapassadas cultivadas
por Amorim e os radicais do PT não vai sair um tostão furado para o futuro do
país.
Marçal só oferece arruaça ao eleitor
Folha de S. Paulo
Desnorteado e com alta rejeição em pesquisas,
candidato protagoniza outro episódio de violência que avilta pleito em SP
Na disputa pela prefeitura paulistana, Pablo Marçal (PRTB)
não ofereceu aos eleitores mais do que habilidades de arruaceiro juvenil. Ao
menos enquanto subia nas pesquisas, entretanto, acreditava saber o que estava
fazendo.
Em declaração de raro cinismo, no final de
agosto, disse que seu comportamento deplorável em debates e sabatinas era
necessário para chamar a atenção dos votantes: "No processo eleitoral, me
perdoe, você tem de ser um idiota. Infelizmente a nossa mentalidade gosta
disso".
Ao que parece, o autointitulado ex-coach não
conhece tão bem quanto imagina a índole do eleitorado. Neste setembro, o Datafolha o
mostra empacado nas intenções de voto e mais distante dos líderes Ricardo Nunes (MDB) e Guilherme
Boulos (PSOL),
enquanto sua taxa de
rejeição atinge patamares proibitivos para um hipotético
segundo turno.
O revés trouxe à tona um Marçal desnorteado,
juntando momentos patéticos às suas habituais demonstrações de boçalidade.
Tentou o papel de vítima quando, após uma série de provocações, tomou uma
cadeirada de outro candidato dado a bravatas e bate-bocas, José Luiz Datena (PSDB).
Não funcionou.
Seria flagrado depois admitindo, em conversa
com apoiadores, que armou uma cena ao deixar o embate em uma ambulância, como
se estivesse gravemente ferido. Mais ridículo foi comparar o episódio com os
atentados sofridos por Jair
Bolsonaro (PL) e o americano Donald Trump.
O passo seguinte foi um canhestro ensaio de
moderação e humildade. Pediu perdão aos eleitores paulistanos pelo baixo nível
da campanha e prometeu mostrar sua versão de "governante" a partir
dali. Tampouco se sustentou a contrição fingida de quem gastou toda a campanha
com provocações e calúnias dirigidas aos adversários.
Pois na segunda-feira (23) Marçal estava de
volta a seu elemento —desta vez, com agravantes.
Sucessivos ataques retóricos a Ricardo Nunes
o levaram a ser expulso de um
debate promovido pelo grupo de internet Flow, que já caminhava
para o encerramento. Ato contínuo, Nahuel Medina, assessor de Marçal, desferiu um
soco em Duda Lima, marqueteiro do prefeito emedebista.
Trata-se de mais um episódio a aviltar a maior série de debates já vista num pleito paulistano. A presença do candidato do PRTB, dada a insignificância da sigla, nem se faz obrigatória nos eventos —ela se justifica pelo interesse jornalístico. É apenas deplorável que Marçal use desse modo a chance de se dirigir ao eleitor.
Um santo do pau oco na ONU
O Estado de S. Paulo
Brasil poderia ter legitimidade para
influenciar rumos da ordem internacional. Mas sem coerência não há
credibilidade. Lula passa lição de moral na ONU sem fazer a lição de casa no
Brasil
Pela nona vez, o presidente Lula da Silva
subiu à tribuna da Assembleia Geral da ONU para recitar seu papel de cobrador.
A lista de queixas tem de tudo: um tratado contra pandemias; menos gastos
militares; paz no Oriente Médio, Europa e África; aceleração da
descarbonização; menos fome, desigualdade, desemprego e violência; juros
amistosos para países pobres; equidade de gênero; e reformas na ONU que
garantam mais representatividade às nações em desenvolvimento. Tudo muito
razoável e condizente com uma cúpula que se presta mais a ser uma vitrine de
aspirações que um fórum de resoluções. Mas, como insistia Henry Kissinger, a
capacidade de influência geopolítica de um país depende de uma combinação
equilibrada de dois ingredientes: poder e legitimidade. O problema é que Lula
não tem nem uma coisa nem outra.
Poder, o Brasil nunca teve. Mas construiu uma
reputação diplomática, com princípios constitucionais sólidos materializados
pelos quadros técnicos e pragmáticos do Itamaraty. Foi essa credibilidade, por
sinal, que conferiu ao País a prerrogativa de inaugurar todos os anos a
Assembleia Geral. Munido dela, o Brasil poderia exercer ao menos o poder de
persuadir outras nações e mediar seus conflitos. Mas não há credibilidade sem
coerência.
Lula se queixou de que “o uso da força, sem
amparo no Direito Internacional, está se tornando regra”. Ao mesmo tempo,
contudo, engendra com a China um “plano de paz” que premia a Rússia, que violou
o direito internacional ao invadir a Ucrânia, um país soberano, e ali comete
atrocidades sistemáticas contra civis, como denunciado em corajosa carta aberta
subscrita por dezenas de diplomatas latino-americanos, entre os quais os
brasileiros Rubens Ricupero e Celso Lafer.
A Rússia, aliás, nem sequer foi nomeada no
discurso de Lula, como em geral não são nomeados, nas notas do Itamaraty sob o
comando espúrio de Celso Amorim, o Hamas ou o Hezbollah. Quando o Hezbollah,
por exemplo, bombardeou um campo de futebol matando várias crianças, o governo
lamentou simplesmente “um ataque”, sem autoria. Quando Israel revida,
multiplicam-se as recriminações e adjetivos.
Em um discurso anterior, Lula se queixou de
que a ONU perdeu “vitalidade”, que seus órgãos carecem de “autoridade” e “meios
de implementação”, que sua legitimidade “encolhe a cada vez que aplica duplos
padrões ou se omite diante de atrocidades”. Poderia estar falando de si mesmo.
O que a sua diplomacia “ativa e altiva” diz
sobre as atrocidades na Venezuela? Lula denuncia a omissão internacional no
Haiti, mas recusou diversos pedidos de apoio a uma força de paz. Queixou-se das
sanções que penalizam os cidadãos de Cuba, mas não disse meia palavra sobre a
ditadura que os penaliza muito mais, há décadas. Queixou-se da negligência com
o clima, enquanto subsidia combustíveis fósseis e as florestas brasileiras
queimam. Propagandeou o Brasil como “celeiro de oportunidades” e exigiu recursos,
mas não cria condições para recebê-los, como o mercado de carbono ou agências
regulatórias independentes. Queixou-se da falta de oportunidades às mulheres,
mas não foi capaz de indicar nenhuma para a Suprema Corte. Queixou-se da
“década perdida” dos países latino-americanos, como se os governos do PT não
tivessem nada a ver com isso. De passagem por Nova York, por sinal, Lula
aproveitou para pedir às agências de risco que restaurem a nota de crédito do
Brasil – enquanto maquina subterfúgios para driblar seu próprio arcabouço
fiscal.
Eis a diplomacia “ativa e altiva” de Lula,
uma diplomacia ativista, calcada em ressentimentos, incoerências, indignações
seletivas e aspirações vazias, e subalterna a potentados autocráticos. Se ao
menos fizesse sua lição de casa – nas questões fiscais e ambientais ou nos
conflitos latino-americanos –, Lula poderia dar lição de moral. Mas, como disse
o jornal esquerdista francês Libération, frustrado com suas ambivalências
em relação à agressão à Ucrânia, Lula é um “falso amigo”. Os brasileiros mais
solertes já sabem há tempos que ele é um falso estadista.
Quando a foto é boa, mas o filme é ruim
O Estado de S. Paulo
Fazenda se queixa do tom das críticas à
política fiscal, mas não se pode condenar quem esteja reticente quando, em meio
à necessidade de congelamento de despesas, governo libera recursos
A equipe econômica está incomodada com o tom
das críticas sobre a política fiscal do governo Lula da Silva. O secretário
executivo do Ministério da Fazenda, Dario Durigan, disse ver certa
irracionalidade nessas análises que, para ele, ignoram a realidade, dado que a
meta, segundo ele, será cumprida sem qualquer tipo de criatividade ou
artifício. “O fato é que o fiscal se recuperou e tem superado as expectativas”,
afirmou, em entrevista sobre o relatório de receitas e despesas do quarto
bimestre deste ano.
Parte das respostas que o governo busca,
casualmente, está no próprio relatório. Na sexta-feira, todos esperavam que
houvesse contenção adicional de despesas, uma vez que os gastos obrigatórios
têm crescido em ritmo mais forte do que o esperado e as receitas não têm
correspondido às expectativas do Executivo.
O governo até bloqueou R$ 2,1 bilhões, mas,
de maneira surpreendente, reverteu o contingenciamento de R$ 3,8 bilhões
anunciado em julho e, na prática, conseguiu liberar R$ 1,7 bilhão em gastos.
Assim, o esforço para o congelamento de despesas caiu de R$ 15 bilhões para R$
13,3 bilhões entre o terceiro e o quarto bimestres.
Na sexta-feira, o ministro da Fazenda,
Fernando Haddad, reclamou da reação intempestiva do mercado e pediu que os
analistas aguardassem as explicações sobre o relatório na semana seguinte. Mas
a entrevista, como esperado, não trouxe um quadro diferente do que se
desenhava.
Para começar, ficou ainda mais claro que o
governo mira no piso da meta fiscal, o que já é bastante controverso por si só,
já que as bandas superior e inferior da meta fiscal servem para acomodar
imprevistos. Embora a meta seja de déficit zero, o limite inferior é de R$ 28,8
bilhões.
O Executivo diz que entregará um déficit de
R$ 28,3 bilhões. Mas o governo ainda poderá excluir, do cálculo da meta, R$
40,5 bilhões em despesas para o enfrentamento das enchentes no Rio Grande do
Sul, para o combate a queimadas em boa parte do País e para o pagamento de
valores retroativos ao Judiciário e ao Ministério Público.
Se esses gastos fossem contabilizados, o
governo teria de congelar outras despesas de mesmo valor. Como não serão, isso
significa que poderá registrar um déficit de até R$ 68,8 bilhões e ainda assim
dizer que a meta de déficit zero foi cumprida. Somente essa longa explicação já
seria motivo suficiente para despertar a desconfiança de analistas sobre a
meta. Mas ainda há mais razões para manter reticência.
O governo atendeu à recomendação do Tribunal
de Contas da União (TCU) e reduziu de R$ 37,7 bilhões para R$ 847 milhões a
expectativa de arrecadação com a retomada do voto de qualidade nos julgamentos
do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Era o mínimo, já que a
arrecadação efetiva até julho foi de apenas R$ 83,35 milhões, segundo a Corte
de Contas.
Tais perdas, no entanto, serão compensadas
por receitas extraordinárias, como o pagamento de dividendos por empresas
estatais, e pela expectativa de empoçamento do Orçamento. Ou seja, o governo
conta com a “bondade” das empresas públicas e com a ineficiência do gasto
público para cumprir a meta.
Esse “otimismo” do lado das receitas se
contrapõe à dura realidade do lado das despesas. A projeção de economia com a
revisão de gastos previdenciários, cuja aposta inicial era de até R$ 10
bilhões, foi reduzida para R$ 9 bilhões e, agora, para R$ 6,8 bilhões.
O vice-presidente Geraldo Alckmin é outro
integrante do governo que não compreendeu a reação do mercado. Para ele, houve
apenas um “pequeno descontingenciamento” motivado pelo crescimento da
arrecadação e do Produto Interno Bruto (PIB), sem ameaçar o arcabouço fiscal.
O que o governo não parece entender é que
cumprir a meta fiscal requer medidas duras e estruturais, muito diferentes das
que têm sido adotadas. De nada adianta alardear ter cumprido o objetivo se a
dívida bruta continuar a avançar na proporção do PIB, dado que a necessidade de
estabilizar a trajetória do endividamento foi a razão pela qual a meta fiscal
foi criada. Nesse caso, uma boa fotografia não salva um filme ruim.
O risco de ‘clonar’ o IBGE
O Estado de S. Paulo
Crise aberta por Márcio Pochmann com a
criação do IBGE+ ameaça a imagem do instituto
O presidente do IBGE, Márcio Pochmann,
decidiu “clonar” o instituto criando a Fundação IBGE+, uma entidade de direito
privado para, segundo disse em nota, reduzir a “dependência” do instituto do
orçamento público, captando recursos extras. Fez isso em julho, mas comunicou
aos funcionários dois meses depois, sem entrar em detalhes, pela intranet, e
acendeu o estopim de uma grave crise institucional no IBGE.
O objeto da nova instituição, chamada pelos
servidores de “IBGE Paralelo”, ainda não está muito claro, tampouco a forma
como vai captar dinheiro. Na nota, publicada depois de protestos dos
servidores, Pochmann diz que a fundação foi criada “espelhando a conformação”
do instituto para receber recursos, “antes impossível” devido à limitação
orçamentária. Diz também ter obtido, do Ministério da Ciência, Tecnologia e
Inovação (MCTI), a certificação do IBGE como instituto de ciência e tecnologia.
Um dos órgãos subordinados àquele ministério
é a Finep, agência pública de financiamento à inovação. Pode estar aí o engenho
montado para receber recursos públicos “por fora” do orçamento, o que
significaria mais um drible nos limites do arcabouço fiscal. No Projeto de Lei
Orçamentária Anual (PLOA) de 2025, o IBGE receberá R$ 2,9 bilhões, segundo o
sindicato nacional dos servidores do instituto, que prepara manifestação de
protesto pedindo a destituição de Pochmann.
Antes do anúncio do sindicato, técnicos e
gestores das duas principais diretorias do IBGE – Pesquisa e Geociências – já
haviam divulgado cartas abertas denunciando a gestão autoritária de Pochmann,
como informou reportagem do Estadão. Numa delas, gerentes se mostraram
preocupados diante de uma administração autoritária e sem transparência; na
outra, os pesquisadores alertaram sobre eventuais mudanças do estatuto do IBGE
e incertezas quanto aos objetivos da criação da Fundação IBGE+.
Os servidores reclamam também de questões
administrativas, como a mudança do trabalho remoto para híbrido e a
transferência de endereços de unidades, mas estas cabem tão somente a
negociações internas. À sociedade interessa manter para o IBGE a imagem de
credibilidade e confiança à qual o principal centro de produção de dados
estatísticos do País sempre fez jus. E as acusações de arbitrariedade,
autoritarismo e opacidade no comando do órgão são sérias ameaças à integridade
de sua reputação.
Márcio Pochmann enfrentou críticas
semelhantes do corpo técnico do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea), quando presidiu o órgão durante seis anos, no segundo governo Lula e
metade do primeiro mandato de Dilma Rousseff. Sua gestão foi marcada por um
êxodo de pesquisadores que reclamavam de pressões políticas em análises sobre o
comportamento macroeconômico, o que fez com que sua indicação para o IBGE, no
ano passado, fosse cercada de desconfiança.
Pochmann é um nome intimamente ligado ao lulopetismo e é difícil imaginar que esteja sob ameaça no cargo. Mas vale ressaltar que a confiabilidade do IBGE é mais importante do que o apreço de Lula a qualquer companheiro.
Lula, Oriente Médio e América Latina
Correio Braziliense
É preciso confirmar com ações aquilo que se
diz no microfone. É inegociável que o Brasil tenha posicionamentos firmes
sempre que preciso, inclusive sobre questões que envolvem a América Latina
O mundo assiste, nos últimos dias, a uma nova
escalada de tensão no Oriente Médio. Em dois dias, mais de 500 pessoas
morreram, sendo 50 menores de idade, e cerca de 1,8 mil ficaram feridas em
bombardeios de aviões israelenses no Líbano. A medida se trata de uma nova
ofensiva contra o Hezbollah, movimento xiita que tem ramificação na política
interna libanesa e também na geopolítica, sobretudo por meio do seu braço
militar.
Os ataques de Israel são mais uma resposta da
nação judaica ao 7 de outubro do ano passado. Para além da ofensiva do Hamas na
Faixa de Gaza, aquele dia ficou marcado por bombardeios feitos pelo Hezbollah
em territórios próximos à fronteira de Israel com o Líbano. Devendo uma
resposta às milhares de famílias que foram evacuadas da região por conta dessas
agressões aéreas, Jerusalém contragolpeou nesta última semana.
Dado o contexto, acerta o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva quando, em seu discurso feito, ontem, na abertura da 79ª
Conferência das Nações Unidas, pede, mais uma vez, paz no Oriente Médio. Por um
lado, o chefe da União cumpriu com seu papel de líder mundial ao ressaltar sua
desaprovação contra a "ação terrorista de fanáticos contra civis
israelenses inocentes" em outubro de 2023.
Por outro, acertou ainda mais ao reprovar a
resposta israelense a esses ataques, classificando-a como "punição
coletiva de todo o povo palestino" e direito de defesa que se transformou
em "direito de vingança, que impede um acordo para a liberação de reféns e
adia o cessar-fogo".
Vale lembrar que a região sul do Líbano, onde
o Hezbollah controla boa parte dos territórios xiitas, está lotada de
brasileiros. É verdade que Lula não citou a presença de cidadãos sob sua
responsabilidade no discurso da ONU, mas o espaço na conferência é aberto para
uma discussão ampla, mais voltada à geopolítica do que aos assuntos de
interesse nacional.
Em 2006, quando outra ofensiva israelense
aconteceu no Líbano, o Itamaraty fez um grande esforço para resgatar cerca de
800 brasileiros que viviam nos arredores de Beirute. Lula mostrou ontem, em seu
discurso, que o seu governo se colocará novamente à disposição de brasileiros
em risco, ainda que não tenha falado diretamente sobre o assunto.
É bem verdade que o presidente não fez nada
além de sua obrigação ao se posicionar contrariamente ao conflito em Beirute.
Ainda assim, em momentos como o atual, nos quais as tensões geopolíticas
aumentam em diferentes partes do mundo e levam a evitáveis guerras, falar o
óbvio traz alguma diferença para o jogo da geopolítica.
É preciso, agora, confirmar com ações aquilo
que se diz no microfone. É inegociável que o Brasil tenha posicionamentos
firmes sempre que preciso, inclusive sobre questões que envolvem a América
Latina, como a eleição de Nicolás Maduro na Venezuela, alcançada com enormes
indícios de fraude.
Lula não citou os conflitos políticos atualmente em curso na América Latina. Não só ignorou a situação venezuelana, como também não tomou posição sobre a Argentina, que, sob o comando de Javier Millei, tem passado por um processo de ataques à democracia parecido com aquele tão denunciado pelo atual presidente no Brasil. Suas falas sobre o continente americano se limitaram à luta contra a fome e à estagnação econômica regional, ainda que as tensões políticas nos países vizinhos ao nosso tenham repercussões muito maiores para as famílias brasileiras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário