Valor Econômico
Fux diz que delator deveria ser reinquirido e
mostra que será empecilho à dominância das teses de Moraes no colegiado
Eixo da denúncia da Procuradoria-Geral da
República, a delação premiada do ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair
Bolsonaro, o coronel Mauro Cid, foi a questão que mais dividiu o julgamento
contra o núcleo político da trama golpista. Os advogados dos acusados adotaram
a linha do “cada um por si”, ora desqualificando a delação, ora usando-a em
defesa de seus clientes. Já os ministros da Primeira Turma acataram a delação,
mas pelo menos dois sinalizaram que poderão vir questioná-la.
Ao abordarem a delação, os ministros Luiz Fux e Cármen Lúcia reiteraram que “neste momento” não há elementos para decretar a nulidade do instituto. “Nove delações significa nenhuma delação”, chegou a dizer Fux, numa referência aos depoimentos de Cid, sendo o último deles depois do vazamento de uma conversa em que desabafou sobre pressões que vinha sofrendo, momento em que a colaboração esteve ameaçada de cancelamento. “Esse colaborador deveria ser ouvido novamente. Eu até gostaria de ir. Vejo com reservas”.
Fux também foi voto divergente na objeção
preliminar à realização do julgamento na Primeira Turma e não no plenário do
Supremo Tribunal Federal. Das cinco preliminares, esta foi a única cuja
rejeição não se deu por unanimidade. Moraes defendeu o julgamento na Primeira
Turma pelo entendimento, estabelecido na Corte, de que é o presidente no
exercício do cargo que tem a prerrogativa de ser julgado em plenário, visto
que, em caso de denúncia, ele fica afastado do cargo por 180 dias. O plenário
seria, então, uma prerrogativa defensiva que não deveria se estender a um
ex-ocupante do cargo.
Fux aludiu à votação de duas semanas atrás em
que ficou vencido, na companhia de outros três colegas (Cármen Lúcia, Edson
Fachin e André Mendonça) - “Ou estamos julgando pessoas que não exercem mais
função pública e não têm foro no Supremo ou estamos julgando pessoas que têm
essa prerrogativa e o local correto seria efetivamente o plenário”. Cármen,
também vencida na ocasião, se alinhou ao voto que prevaleceu e acatou o
julgamento na Turma.
Fux já havia sinalizado que daria trabalho ao
relator da ação, o ministro Alexandre de Moraes, quando, na véspera, pediu
vista no julgamento da cabeleireira Débora Santos, que pichou a estátua em
frente ao Supremo (“Perdeu, mané”) em 8/1 e recebeu, de Moraes e Flávio Dino,
uma pena de 14 anos de prisão. Fux, que já vinha se queixando internamente da
dificuldade de Moraes aceitar ponderações, parece ter resolvido expor sua
insatisfação publicamente.
Ao final da segunda sessão de julgamento, o
ministro relator resolveu prestar contas ao que chamou de “narrativa” - “a de
que o Supremo estaria condenando velhinhas com bíblia na mão que passeavam num
domingo ensolarado pela sede dos Poderes”. Das 497 condenações, disse, metade o
foi por penas inferiores a três anos (substituídas por penas alternativas) e
menos de 10% (43) por penas superiores a 17 anos. Mulheres são 32% dos
condenados, e idosos, 8,6%.
Foi Cármen Lúcia que, na rejeição da
preliminar de acesso aos autos, usou do argumento mais definitivo e, ainda, com
um cortejo à defesa: “A altíssima qualidade da defesa com sustentações orais
primorosas denota acesso ao processo. Se há juízes, também há advogados no
Brasil”.
Dois dos advogados presentes têm larga
experiência no Supremo: Celso Vilardi, que defende o ex-presidente, e José Luis
de Oliveira Lima, defensor do general Walter Braga Netto, ex-ministro da Casa
Civil e Defesa e ex-candidato a vice na chapa presidencial de 2022. Ambos
advogaram, por exemplo, no mensalão; Oliveira Lima para o ex-ministro José
Dirceu e Vilardi para o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares.
Ambos atacaram a delação por “mentirosa” e, ao fazê-lo, deixaram clara a centralidade do vazamento do “desabafo” de Mauro Cid à revista Veja para sua linha de defesa. Oliveira Lima chegou a se solidarizar com os ministros pelos atos do 8 de janeiro, que teve no STF o principal alvo - “fiquei assustado” -, depois contestou toda a delação, a começar pela presença de Moraes no nono e último depoimento do delator.
O ministro relator justificou sua presença
neste depoimento pela importância que este passou a ter depois do vazamento.
Explicou que a tanto a Polícia Federal quanto a PGR se manifestaram pela prisão
de Cid. Resolveu, então, substituir o juiz instrutor (“Quando deleguei não
houve problema, mas quando participei é nulo?”) por temer uma prisão que
pudesse levar o delator a falar e a suscitar a acusação de que ele falou sob
coação.
Se Vilardi e Oliveira Lima contestaram a
delação, outros quatro advogados a usaram em defesa de seus clientes. Dada a
centralidade do instrumento para a acusação, e tendo em vista que o delator não
incriminou seus clientes, se refastelaram no uso benigno das acusações de Cid,
não importando os danos causados a Bolsonaro ou Braga Netto.
Foi o caso de Paulo Renato Garcia Pinto,
advogado do deputado federal Alexandre Ramagem (PL-DF), ex-diretor da Abin, de
Eumar Novacki, advogado do ex-ministro da Justiça, Anderson Torres, de Andrew
Farias, que defende o general Paulo Cesar Nogueira, ex-ministro da Defesa, e
ainda de Mateus Milanez, advogado do ex-ministro do GSI, general Heleno
Ribeiro.
Não faltaram provocações. Milanez chegou a
chamar a denúncia de “terraplanismo argumentativo”, valendo-se da crença
atribuída à extrema-direita. Demóstenes Torres, ex-senador cassado em 2012 pelo
Senado, acusado de ligação com o bicheiro Carlinhos Cachoeira, que hoje defende
o ex-comandante da Marinha Almir Garnier, chegou a chamar os policiais federais
que fizeram as investigações de “romancistas”.
Nenhum deles, porém, foi capaz de competir
com o mais notório dos acusados. Nos 20 minutos em que esperou pelo início da
sessão ao lado de seus advogados, sentado à primeira fila, Bolsonaro não saiu
do celular. Em dado momento publicou no “X” uma analogia do julgamento com o
jogo Brasil x Argentina daquela noite: “Já no meu caso, o juiz apita contra
antes mesmo do jogo começar... e ainda é o VAR, o bandeirinha, o técnico e o
artilheiro do time adversário”.
A galhardia era aparente. Sua surpreendente presença no julgamento visava a neutralizar a ideia de que a licença do deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que foi para os EUA e não voltou, foi um ato de covardia. A repercussão do julgamento, porém, já não é a mesma na sua bolha.
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