quarta-feira, 26 de março de 2025

Delação divide defesa e cria dissidência na Primeira Turma - Maria Cristina Fernandes

Valor Econômico

Fux diz que delator deveria ser reinquirido e mostra que será empecilho à dominância das teses de Moraes no colegiado

Eixo da denúncia da Procuradoria-Geral da República, a delação premiada do ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro, o coronel Mauro Cid, foi a questão que mais dividiu o julgamento contra o núcleo político da trama golpista. Os advogados dos acusados adotaram a linha do “cada um por si”, ora desqualificando a delação, ora usando-a em defesa de seus clientes. Já os ministros da Primeira Turma acataram a delação, mas pelo menos dois sinalizaram que poderão vir questioná-la.

Ao abordarem a delação, os ministros Luiz Fux e Cármen Lúcia reiteraram que “neste momento” não há elementos para decretar a nulidade do instituto. “Nove delações significa nenhuma delação”, chegou a dizer Fux, numa referência aos depoimentos de Cid, sendo o último deles depois do vazamento de uma conversa em que desabafou sobre pressões que vinha sofrendo, momento em que a colaboração esteve ameaçada de cancelamento. “Esse colaborador deveria ser ouvido novamente. Eu até gostaria de ir. Vejo com reservas”.

Fux também foi voto divergente na objeção preliminar à realização do julgamento na Primeira Turma e não no plenário do Supremo Tribunal Federal. Das cinco preliminares, esta foi a única cuja rejeição não se deu por unanimidade. Moraes defendeu o julgamento na Primeira Turma pelo entendimento, estabelecido na Corte, de que é o presidente no exercício do cargo que tem a prerrogativa de ser julgado em plenário, visto que, em caso de denúncia, ele fica afastado do cargo por 180 dias. O plenário seria, então, uma prerrogativa defensiva que não deveria se estender a um ex-ocupante do cargo.

Fux aludiu à votação de duas semanas atrás em que ficou vencido, na companhia de outros três colegas (Cármen Lúcia, Edson Fachin e André Mendonça) - “Ou estamos julgando pessoas que não exercem mais função pública e não têm foro no Supremo ou estamos julgando pessoas que têm essa prerrogativa e o local correto seria efetivamente o plenário”. Cármen, também vencida na ocasião, se alinhou ao voto que prevaleceu e acatou o julgamento na Turma.

Fux já havia sinalizado que daria trabalho ao relator da ação, o ministro Alexandre de Moraes, quando, na véspera, pediu vista no julgamento da cabeleireira Débora Santos, que pichou a estátua em frente ao Supremo (“Perdeu, mané”) em 8/1 e recebeu, de Moraes e Flávio Dino, uma pena de 14 anos de prisão. Fux, que já vinha se queixando internamente da dificuldade de Moraes aceitar ponderações, parece ter resolvido expor sua insatisfação publicamente.

Ao final da segunda sessão de julgamento, o ministro relator resolveu prestar contas ao que chamou de “narrativa” - “a de que o Supremo estaria condenando velhinhas com bíblia na mão que passeavam num domingo ensolarado pela sede dos Poderes”. Das 497 condenações, disse, metade o foi por penas inferiores a três anos (substituídas por penas alternativas) e menos de 10% (43) por penas superiores a 17 anos. Mulheres são 32% dos condenados, e idosos, 8,6%.

Foi Cármen Lúcia que, na rejeição da preliminar de acesso aos autos, usou do argumento mais definitivo e, ainda, com um cortejo à defesa: “A altíssima qualidade da defesa com sustentações orais primorosas denota acesso ao processo. Se há juízes, também há advogados no Brasil”.

Dois dos advogados presentes têm larga experiência no Supremo: Celso Vilardi, que defende o ex-presidente, e José Luis de Oliveira Lima, defensor do general Walter Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil e Defesa e ex-candidato a vice na chapa presidencial de 2022. Ambos advogaram, por exemplo, no mensalão; Oliveira Lima para o ex-ministro José Dirceu e Vilardi para o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares.

Ambos atacaram a delação por “mentirosa” e, ao fazê-lo, deixaram clara a centralidade do vazamento do “desabafo” de Mauro Cid à revista Veja para sua linha de defesa. Oliveira Lima chegou a se solidarizar com os ministros pelos atos do 8 de janeiro, que teve no STF o principal alvo - “fiquei assustado” -, depois contestou toda a delação, a começar pela presença de Moraes no nono e último depoimento do delator.

O ministro relator justificou sua presença neste depoimento pela importância que este passou a ter depois do vazamento. Explicou que a tanto a Polícia Federal quanto a PGR se manifestaram pela prisão de Cid. Resolveu, então, substituir o juiz instrutor (“Quando deleguei não houve problema, mas quando participei é nulo?”) por temer uma prisão que pudesse levar o delator a falar e a suscitar a acusação de que ele falou sob coação.

Se Vilardi e Oliveira Lima contestaram a delação, outros quatro advogados a usaram em defesa de seus clientes. Dada a centralidade do instrumento para a acusação, e tendo em vista que o delator não incriminou seus clientes, se refastelaram no uso benigno das acusações de Cid, não importando os danos causados a Bolsonaro ou Braga Netto.

Foi o caso de Paulo Renato Garcia Pinto, advogado do deputado federal Alexandre Ramagem (PL-DF), ex-diretor da Abin, de Eumar Novacki, advogado do ex-ministro da Justiça, Anderson Torres, de Andrew Farias, que defende o general Paulo Cesar Nogueira, ex-ministro da Defesa, e ainda de Mateus Milanez, advogado do ex-ministro do GSI, general Heleno Ribeiro.

Não faltaram provocações. Milanez chegou a chamar a denúncia de “terraplanismo argumentativo”, valendo-se da crença atribuída à extrema-direita. Demóstenes Torres, ex-senador cassado em 2012 pelo Senado, acusado de ligação com o bicheiro Carlinhos Cachoeira, que hoje defende o ex-comandante da Marinha Almir Garnier, chegou a chamar os policiais federais que fizeram as investigações de “romancistas”.

Nenhum deles, porém, foi capaz de competir com o mais notório dos acusados. Nos 20 minutos em que esperou pelo início da sessão ao lado de seus advogados, sentado à primeira fila, Bolsonaro não saiu do celular. Em dado momento publicou no “X” uma analogia do julgamento com o jogo Brasil x Argentina daquela noite: “Já no meu caso, o juiz apita contra antes mesmo do jogo começar... e ainda é o VAR, o bandeirinha, o técnico e o artilheiro do time adversário”.

A galhardia era aparente. Sua surpreendente presença no julgamento visava a neutralizar a ideia de que a licença do deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que foi para os EUA e não voltou, foi um ato de covardia. A repercussão do julgamento, porém, já não é a mesma na sua bolha.

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