Correio Braziliense
Presidente da Primeira Turma, ministro
Cristiano Zanin marcou para hoje a continuidade do julgamento, que deve
apreciar o mérito da denúncia contra o ex-presidente da República e outros sete
denunciados
Por se tratar de um julgamento inédito, seja porque o principal acusado de tentativa de golpe de Estado é um ex-presidente da República, seja por generais de quatro estrelas igualmente acusados serem julgados na Justiça civil, todos por intentar contra o regime democrático, vem ao caso o coronel Tamarindo, personagem histórico da Guerra de Canudos (1896-1897), no interior da Bahia. Como ele, as defesas de Jair Bolsonaro e dos demais acusados adotaram a Lei de Murici.
Alexandre Ramagem, ex-diretor-geral da
Agência Brasileira de Inteligência (Abin); almirante Almir Garnier Santos,
ex-comandante da Marinha; Anderson Torres, ex-ministro da Justiça e
ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal; general Augusto Heleno,
ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência; Mauro Cid,
ex-chefe da Ajudância de Ordens da Presidência; general Paulo Sérgio Nogueira,
ex-ministro da Defesa; e general Walter Souza Braga Netto, ex-ministro da Casa
Civil — são os demais acusados de sedição. Negam qualquer participação nos atos
de 8 de janeiro de 2023. Como não se pode negar o que houve na Praça dos Três
Poderes, cada defesa trata de excluir seu cliente da conspiração.
Pode ser uma tática fadada ao fracasso, mais
ou menos como a do coronel Pedro Nunes Batista Ferreira Tamarindo (1837-1897)
na Guerra de Canudos. Os jagunços do líder messiânico Antônio Conselheiro já
haviam rechaçado duas expedições do Exército. A derrota da terceira, com 1,3
mil homens, comandada por um dos heróis da Guerra do Paraguai, coronel Moreira
César (o Corta-Cabeças), foi um espanto.
Moreira César era um militar que se esvaía
“na barbaridade revoltante”, segundo Euclides da Cunha em Os Sertões. Entrou em
batalha de salto alto: “Vamos almoçar em Canudos”, anunciou, antes de invadir o
arraial. Acabou morto. O coronel Tamarindo, que assumiu o comando após sua
morte, entrou para a história ao ordenar a debandada: “É tempo de murici, cada
um cuide de si”. Também foi esquartejado pelos jagunços.
Ontem, por unanimidade, os integrantes da
Primeira Turma rejeitaram o pedido das defesas dos acusados para que os
ministros Alexandre de Moraes, Flávio Dino e Cristiano Zanin fossem impedidos
de atuar no julgamento. Além dos três, participam da turma Cármen Lúcia e Luiz
Fux. A segunda questão preliminar analisada foi sobre a competência da turma
para julgar o caso, além de um pedido de nulidade do acordo de colaboração
premiada do ex-ajudante de ordens Mauro Cid — ambos negados, porém, sem
unanimidade.
Divergências de Fux
A dissidência foi de Fux, para quem a análise
da denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre a tentativa de golpe
de Estado deveria ser feita no plenário da Corte. Para o magistrado, a dimensão
do caso exige a apreciação dos 11 ministros, por se tratar “de ataque direto à
ordem democrática”, e não uma ação criminal comum. Segundo Fux, o plenário pode
garantir a “maior autoridade e legitimidade institucional” da decisão. Desde
2023, regimentalmente, é das turmas a competência para analisar casos penais,
ou seja, investigações e processos em que se apura se houve crime.
“Essa matéria não é tão pacífica assim, foi
mudada e remudada. No meu modo de ver, se fosse tão pacífica… depois da mudança
do regimento, dias atrás, fui vencido. Ou estamos julgando pessoas que têm
prerrogativa e o local correto seria o plenário do Supremo Tribunal Federal. O
fato de que há inúmeras ações decorre exatamente de que o número de partes
envolvidas é multitudinário”, disse o ministro. Seu voto, embora vencido, cria
um grande constrangimento para a turma, pois trata-se de pôr em questão o chamado
“devido processo legal”.
No mês passado, a PGR denunciou 34 pessoas,
divididas em núcleos, por estimular e realizar atos contra os Três Poderes e
contra o Estado Democrático de Direito. Segundo a Procuradoria da República,
Bolsonaro tinha ciência e participação ativa em uma trama golpista para se
manter no poder e impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele
seria o principal mandante, ao lado dos demais acusados que formavam seu
“estado-maior” no governo, o núcleo principal.
O presidente da Primeira Turma, ministro
Zanin, marcou para hoje a continuidade do julgamento, que deve apreciar o
mérito da denúncia. Ontem, Moraes optou por apresentar o relatório da forma
mais simples e objetiva possível, sem juridiquês. Em seguida, as defesas dos
oito denunciados e o procurador-geral da República, Paulo Gonet, foram ouvidos.
Todos os advogados questionaram a forma como
o inquérito policial foi conduzido, sem que tivessem pleno acesso às provas da
acusação. Houve muita carga contra a delação premiada de Mauro Cid, que prestou
nove depoimentos de delação, o que também foi objeto de ressalva de Fux, que
pretende se pronunciar sobre a legalidade da delação no decorrer do julgamento.
Os advogados querem anular a delação.
Caso seja aceita a denúncia, hoje,
efetivamente começará uma ação penal no STF. Estima-se que o julgamento se
conclua em setembro, depois da fase de produção de provas por parte da acusação
e dos advogados de defesa. Serão coletadas provas, realizadas oitivas de
testemunhas (oito para cada réu) e analisados documentos que possam reforçar ou
enfraquecer a acusação. Bolsonaro é representado pelo advogado Celso Vilardi,
que refutou toda as acusações: “Bolsonaro não participou do 8 de Janeiro. Pelo
contrário, repudiou.”
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