Folha de S. Paulo
Com Legislativo empoderado, presidente deve
sair a campo e não apenas se valer de intermediários; modelo abre espaço para
comportamento ideológico
O presidencialismo
de coalizão não acabou, mas não é o mesmo que foi até 2015. Desde
então, seguidas mudanças institucionais alteraram a dinâmica de nosso sistema
de governo, empoderando o Congresso
Nacional e enfraquecendo o Poder Executivo.
A Presidência da República, que antes pautava o processo decisório legislativo, usando os amplos poderes institucionais e de agenda que lhe foram conferidos pela Constituição de 1988, perdeu tal capacidade. O Congresso, embora mais poderoso, tornou-se mais irresponsável, pois o custo de suas decisões de amplo impacto não recai sobre si, mas sobre o governo de turno. Estamos diante do governo congressual.
Dois presidentes fracos e inaptos em sua
relação com o Congresso deixaram um vácuo de poder que foi ocupado pelo
Legislativo não apenas conjuntural, mas estruturalmente. Dilma
Rousseff (PT) era inapetente para interagir com parlamentares e perdeu
poder paulatinamente ao longo de seu primeiro mandato, culminando na crise do
primeiro ano de seu segundo governo —que, após levar Eduardo Cunha à
presidência da Câmara
dos Deputados, permitiu aprovar a emenda constitucional 86, que tornou
impositivas as emendas orçamentárias individuais.
Já Jair
Bolsonaro (PL)
abdicou da construção de uma coalizão de governo e de liderar negociações sobre
projetos de sua gestão no Parlamento. Após enviar propostas, dizia que a partir
de então "a bola está com o Congresso". Isso abriu espaço para
aprovar a emenda constitucional 100, tornando impositivas as emendas
orçamentárias de bancadas estaduais. Depois ainda veio a emenda constitucional
105, criando as transferências especiais, ou "emendas
Pix", que possibilitaram destinar a governos subnacionais recursos sem
finalidade definida, projeto ou destinação específica. E acrescente-se: emendas
para pequenos municípios são manancial para corrupção e financiamento ilegal de
campanhas, algo que merece atenção.
Não bastasse isso tudo, ainda durante o
governo Bolsonaro cresceram de importância as emendas do relator do Orçamento,
configurando o que ficou conhecido como "orçamento
secreto"; depois ganharam corpo as emendas de comissão, cuja autoria
também é de difícil determinação. Reside aí a causa do conflito entre
o Legislativo e o Supremo Tribunal Federal, na pessoa do ministro Flávio Dino.
Todas essas mudanças relativas ao Orçamento,
com o controle de montantes cada vez mais alentados de recursos públicos pelos
congressistas, tornaram desinteressante a ocupação de cargos ministeriais como
forma de acessar recursos. Também dificultaram o trabalho dos líderes
partidários e do governo de manter a disciplina em uma bancada situacionista,
pois perdeu importância a liberação de verbas como recurso para a barganha
premiando ou punindo parlamentares de acordo com sua fidelidade.
Isso, por um lado, descompromete a maioria
dos congressistas em relação a qualquer agenda governamental que contrarie seus
interesses imediatos, bem como aqueles de setores econômicos aos quais servem e
pelos quais são apoiados em disputas eleitorais. Por outro, paradoxalmente,
abre espaço para um comportamento mais ideológico, já que o velho pragmatismo
adesista em troca de recursos públicos se tornou desnecessário. Os partidos
de adesão que compõem o centrão já não precisam mais aderir, podendo se dar
ao luxo de atuar ideologicamente, já que ficam de barriga cheia por seus
próprios meios.
Num contexto de governo ideologicamente
desalinhado da posição dominante no Legislativo, a relação se torna ainda mais
difícil, já que divergências se exacerbam. Por isso, Lula tem
dificuldades maiores do que tiveram Michel Temer (MDB) e até mesmo
Bolsonaro, pois se os Congressos anteriores já eram bastante à direita, o atual
é ainda mais.
Isso independe da capacidade de articulação
ou da competência do presidente na gestão da coalizão. Claro, porém, que se o
Executivo não atuar bem nesta seara, o que já seria difícil se tornará ainda
mais complicado. Eis a importância de o presidente sair a campo e não apenas se
valer de intermediários; não vai resolver todo o problema, mas importa.
*Cientista político, professor da FGV-Eaesp,
pesquisador do Centro de Política e Economia do Setor Público (Cepesp-FGV) e
bolsista de produtividade do CNPq
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