Folha de S. Paulo
Toda a camuflagem ideológica em uso sempre
escondeu de modo sofrível a única coisa que eles buscam, seus interesses
Se existe um talento dos Bolsonaros que
não se pode negar, é a grande habilidade de usar pessoas e instituições em
benefício exclusivo da família. E não importam os riscos ou consequências
envolvidas, pois a responsabilidade e os efeitos sempre recaem sobre os ombros
de terceiros, jamais sobre eles.
A lista dos que se prestaram a essa função
—convencidos de que se tratava de defender princípios ou lutar por um propósito
nobre— é enorme.
Usaram Sara Winter para ameaçar e intimidar o Supremo, assim como depois utilizaram, sem escrúpulos, Sérgio Reis, Zé Trovão e os caminhoneiros que aderiram ao movimento bolsonarista.
O objetivo? Fazer com que o Supremo deixasse
de ser um obstáculo à vontade arbitrária de Jair
Bolsonaro, que sempre teve certeza de que o fato de ter vencido uma eleição
presidencial lhe dava o direito de moldar o país conforme seus interesses e
apetites, sem ser incomodado por normas e freios constitucionais.
Recentemente, um relatório da Polícia Federal
mostrou que recorreram à mesma estratégia com integrantes das Forças Armadas,
envolvidos num esquema que, no fim das contas, buscava apenas manter Jair
Bolsonaro no comando do país a qualquer custo. Nem que, para isso, fosse
necessário intimidar e assediar o Supremo, ou mesmo assassinar juízes da
Suprema Corte e autoridades eleitas, executar um golpe de Estado e provocar uma
guerra civil —como está documentado.
Nem seria preciso mencionar o uso
inescrupuloso da boa-fé dos mais fervorosos seguidores, convencidos pelo
círculo íntimo de Bolsonaro de que o caminho para perpetuá-lo no poder passava
por meter o pé na porta dos três Poderes e demonstrar que, ou se anulava o
resultado das eleições, ou o povo arrebentaria tudo. O bem da família sempre
esteve na equação; o bem do país nunca passou de álibi e disfarce.
É da natureza deles. Os Bolsonaros usam quem
quer que se preste ao seu projeto de poder familiar ou, complementarmente, quem
se disponha a remover os obstáculos naturais que uma República impõe ao
arbítrio. Toda a camuflagem ideológica —de homens conservadores de direita,
protetores da livre iniciativa, última linha de defesa contra a esquerda—
sempre escondeu muito mal, exceto para os fanáticos da seita, a única coisa que
buscaram: os interesses do clã.
Congresso, Constituição, instituições do
Estado, eleições, Suprema Corte, jornalismo e até a lei: tudo o que atravessa o
caminho da família precisa ser removido. O grande dom dos Bolsonaros consiste
precisamente em sempre encontrar quem se disponha a servir a essa ambição.
Se isso tudo é fato, por que teriam
escrúpulos de recorrer a um poder estrangeiro contra a própria pátria? Eduardo
Bolsonaro, o embaixador do bolsonarismo no "Trumpistão", se
vangloria do feito sem qualquer constrangimento. Afinal, que mal poderia haver
em sacrificar a economia do estado brasileiro que o elegeu o deputado mais
votado do país, se a anistia a Jair Bolsonaro é o prêmio pretendido? Dane-se
mil vezes São Paulo, pouco importa a indústria e o agronegócio brasileiros,
a liberdade de Bolsonaro vale muito mais que tudo.
O que dizer aos empresários, homens de
negócios e cidadãos comuns que acreditaram na história do "Brasil acima de
tudo, Deus acima de todos"? Ora, o mesmo que se pode dizer a todos os que
serviram aos Bolsonaros e foram abandonados à própria sorte quando já não lhes
eram úteis: vocês vão pagar o pato. O lema verdadeiro deles sempre foi
"primeiro a nossa família". O resto é enganação para obter massa de
manobra.
Se nem a possibilidade de uma segunda
"bomba atômica" americana de retaliações sobre o país pode ser
desconsiderada, caso resistamos à chantagem política que é premissa do tarifaço
de Trump —como ameaçou o senador Flávio Bolsonaro—,
que dirá desemprego e quebra de empresas. Lembremos que, no recente plano de
golpe de Estado —apurado e descrito pela Polícia Federal—, as esperadas mortes
de civis e a convulsão social foram marcadas como "dano colateral
aceitável".
A economia era mais importante do que a vida
das pessoas durante a pandemia, lembram? Só que, ante a liberdade e os
interesses de Bolsonaro, até ela se torna secundária e irrelevante.
"Papai é a nossa pátria", diriam,
se fossem honestos com os que ainda os seguem. Não há, portanto, projeto mais
nobre do que manter papai no poder, nem propósito mais sublime para o país do
que livrar papai da cadeia. Quanto isso custará às pessoas e ao país não
importa: é dano colateral aceitável. Afinal, primeiro eles, depois eles. E
depois deles? Eles de novo.
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