Folha de S. Paulo
Não faz sentido reclamar que nossas regiões
mais ricas subsidiam as mais pobres
O que a Dinamarca, China, as duas
Coreias e o Brasil têm em comum? Seus governos em algum momento geraram fome em
nome de rápida industrialização. Em alguns países, isso ainda explica parte da
diferença de renda entre regiões.
No Brasil, já ouvi de gente do Sul e Sudeste
que nosso atraso está ligado à necessidade de regiões ricas subsidiarem as mais
pobres. Mas é aí que está a questão: nunca foi requerimento empobrecer o Norte
e Nordeste para o Brasil crescer, mas foi esse o caminho escolhido pelos
governos militares, responsáveis pela aceleração da industrialização
brasileira.
Os militares usaram tática comum em muitos países: transferir recursos da agricultura para áreas industriais. Com aumento do empobrecimento e criação de oportunidades em outras regiões, o que seria migração natural se transforma em êxodo rural. As regiões mais ricas começam a sugar pessoas fugindo das condições funestas das áreas agrícolas, em um círculo vicioso que pode durar décadas.
A Coreia do Sul fez
algo similar nos anos 1960 e 70, suprimindo preços agrícolas para aumentar a
renda dos trabalhadores urbanos, mas abandonou isso por uma industrialização
mais inclusiva. A Coreia do
Norte faz isso até hoje. Tem tecnologia de ponta em várias áreas, à
custa de uma população rural mal nutrida.
Na China, a industrialização forçada causou
milhões de mortes como consequência do Grande Salto para a Frente, fartamente
estudado pelo mundo afora. Brasil, Dinamarca e outros países viveram algo
parecido, mas em muito menor escala (mais de 10% da população dinamarquesa
fugiu para os EUA de 1868 a 1908).
Não é coincidência que a família do nosso
presidente tenha chegado em São Paulo nos anos 1950, fugindo da fome e da seca,
quando se iniciava esse processo.
Migração rural é natural em qualquer processo
de industrialização, mas êxodo rural, no qual as pessoas fogem do pior, é
escolha política. O erro da China nos anos 1950 não foi repetido no período de
1980 a 2010, quando o país cresceu mais de 10% ao ano e a população urbana saiu
de 15% para quase 50%.
O processo foi feito sem suprimir o setor
agrícola e por isso ainda está longe de acabar, com 40% da população chinesa
ainda em áreas rurais. O que motiva o migrante interno chinês é renda extra e
não fome e seca, como no Brasil dos anos 1950 a 1980. Se o Nordeste é mais
pobre hoje, é porque sua população foi usada, contra sua vontade, para acelerar
a industrialização brasileira.
Não precisava ter sido assim. Talvez não
tivéssemos tido o "milagre econômico" (um
mito de qualquer forma, pois causou diretamente a hiperinflação). Contudo,
um desenvolvimento industrial mais lento seria mais que compensado pela
possibilidade de menores disparidades regionais. Talvez o Nordeste fosse mais
próspero. Mas nunca vamos saber.
Os militares escolheram empobrecer o sertão
para acelerar a migração. Entregaram favelas e desigualdade nos centros urbanos
e fome e seca nas áreas rurais. Ainda estamos nos recuperando disso. Serão
décadas antes que as regiões brasileiras venham a convergir. Enquanto isso, não
faz sentido alguém do Sul reclamar de subsidiar alguém do Norte. Afinal, foram
subsidiados pelo Nordeste. Só que não com dinheiro e sim com vidas. Milhões
delas.
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