CartaCapital
As prerrogativas do Congresso não podem ser
utilizadas como meio de esvaziamento do legítimo campo de atribuição do
Executivo
O Congresso Nacional, alegando exorbitância no exercício do poder regulamentar, sustou os decretos do presidente da República que majoraram, dentro dos limites máximos previstos em lei, as alíquotas do Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro ou Relativas a Títulos ou Valores Mobiliários (IOF). A questão em exame não versa sobre mera matéria de natureza tributária, bem como de um desejável controle recíproco entre os poderes do Estado quanto às limitações normativas do poder de tributar. Deparamo-nos com um conflito entre os poderes do Estado inédito na nossa história recente.
O Parlamento valeu-se de uma competência
constitucional não para corrigir um transbordamento no exercício do poder
regulamentar, mas para criar uma instabilidade no próprio sistema
presidencialista de governo e, ainda, a arquitetura da administração pública da
União, à qual nossa Constituição conferiu protagonismo na implementação de
políticas públicas e na prestação de serviços públicos.
A Constituição, ao prever serem poderes da
União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o
Judiciário, consagrou a técnica da separação de poderes do Estado ou, mais
adequadamente, a sistemática de tripartição de funções estatais, nos moldes
consagrados nas democracias contemporâneas. A existência de poderes
independentes e harmônicos entre si é pressuposto sem o qual o Estado
democrático, os valores republicanos e os direitos fundamentais não se realizam
plenamente.
Três normas constitucionais permeiam a
discussão em exame: a que dispõe ser facultado ao Poder Executivo, atendidas as
condições e os limites estabelecidos em Lei, alterar as alíquotas do IOF;
aquela que prevê competir privativamente ao presidente da República expedir
decretos e regulamentos para sua fiel execução das Leis; e, por fim, a que
prevê ser de competência exclusiva do Congresso Nacional sustar os atos
normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar.
Ademais, as seguintes premissas normativas se
somam à análise ora entabulada: a) normas infraconstitucionais regulamentaram
as alíquotas máximas do IOF e conferiram ao Poder Executivo a prerrogativa de,
obedecidos os limites máximos, alterar as alíquotas, isso tendo em vista os
objetivos das políticas monetária e fiscal; b) o presidente da República
majorou as alíquotas do imposto dentro dos limites máximos fixados em Lei; e,
por fim, c) a sustação, pelo Congresso Nacional, decorreu de Projeto de Decreto
Legislativo de autoria do deputado federal Zucco (PL/RS), em cuja justificativa
assim constou: “(…) o IOF (…) é um imposto extrafiscal que somente pode ser
utilizado como instrumento para controle da política econômica, inadmitindo o
desejado feitio arrecadatório (…) ”. Em suma, o presidente da República teria
majorado as alíquotas do imposto não para alcançar objetivos das políticas
monetária e fiscal, mas para fins arrecadatórios.
Entretanto, o presidente da República majorou
as alíquotas do imposto dentro dos limites máximos fixados em lei, razão pela
qual inexistiu qualquer exorbitância no exercício do poder regulamentar.
Referidos decretos não inovam primariamente a ordem jurídica, razão pela qual o
mecanismo de autodefesa do Legislativo é inconstitucional.
Mesmo que fosse admitida a alegada função
arrecadatória na majoração das alíquotas, a função extrafiscal/regulatória do
IOF não é um impeditivo para o reconhecimento da sua função arrecadatória, isso
consoante precedentes do Supremo Tribunal Federal. Aliás, é do STF a condição
de guardião e curador máximo da Constituição. Subvertendo a lógica
constitucional, o Congresso não pode outorgar a si próprio a condição de
guardião máximo da Constituição, fragilizando a sistemática de tripartição de
funções estatais.
A realização dos fins do Estado pressupõe a
convivência harmônica entre os poderes. A esfera de livre decisão política do
legislador não pode ocorrer em detrimento da vontade da Constituição. Ao
Legislativo não compete a determinação dos limites, bem como a extensão e o
alcance da nossa Constituição, substituindo do Supremo Tribunal Federal seu
papel de intérprete final e guardião máximo.
As prerrogativas parlamentares não podem ser
utilizadas como meios de esvaziamento do legítimo campo de atribuição do
Executivo, bem como de fraudulento exercício de autodefesa, travestido de forma
jurídica. A instabilização ao pacto entre os poderes deve ser rechaçada, sob
pena de comprometimento dos valores democráticos. •
Publicado na edição n° 1369 de CartaCapital, em 09 de julho de 2025.
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