sábado, 5 de julho de 2025

Fogueira de São João - Sergio Lirio

CartaCapital

O governo, enfim, reage à afronta do Congresso. Em certas situações, fogo se combate com fogo

Escorreu mais rápido pelas redes sociais do que pela garganta aquela talagada na boquinha da garrafa de uísque do presidente da Câmara, Hugo Motta, registrada em vídeo durante os festejos juninos em Patos, Paraíba, terra natal do deputado. Naquele instante de puro malte e descontração, imaginemos, Motta provavelmente arquitetava os detalhes da maior fogueira acesa no Congresso desde que assumiu o lugar de Arthur Lira como tutor do parlamentarismo, ou semipresidencialismo, à brasileira. De volta à mesa diretora, ainda embalado pelas sanfonas do “arraiá”, o parlamentar empilhou a lenha das traições, dos ressentimentos, da chantagem, dos interesses explícitos e escusos, dos lobbies, da antecipação da campanha eleitoral e da desarticulação do governo para colocar fogo no País, enquanto convidava os pares a dançar a quadrilha no plenário da Casa sobre o cadáver do decreto do Palácio do Planalto. “Olha o IOF. É mentiiiraaaa”, gritaram quase 400 excelências. O governo Lula saiu chamuscado, mas quem ardeu na brasa foram os 99% de brasileiros a quem, historicamente, são oferecidas as cinzas no fim da festa.

Motta traiu o acordo negociado com o ministro Fernando Haddad, mas se achou no direito de ensaiar uma indignação de pai da noiva grávida no casório caipira. Diante das críticas ao atropelo das prerrogativas do Executivo e da constatação de que o Congresso só verte lágrimas quando alguém propõe mexer no intocável bolso dos donos do dinheiro e do poder, o deputado reclamou da “polarização social” supostamente promovida pelo governo. Típico. No Brasil, os defensores da “pacificação” são os primeiros a atiçar o ódio e a divisão, agressores “denunciam” a violência quando o agredido reage e aqueles que se dizem cansados da “polarização” só querem impor a sua vontade sem o aborrecimento do debate público. Bom cabrito não berra, decreta o senso comum.

Pois o cabrito, enfim, berrou. A decisão de recorrer ao Supremo Tribunal Federal contra a inconstitucional derrubada do decreto do IOF parece indicar uma inflexão de Lula e uma compreensão do Palácio do Planalto do que está em jogo a pouco mais de um ano das eleições presidenciais. Antes tarde. O presidente iniciou o terceiro mandato com a mesma disposição conciliatória dos dois governos anteriores, mas as circunstâncias mudaram radicalmente desde o ­impeachment de Dilma Rousseff. Michel Temer, o fraco, e Jair Bolsonaro, o inepto, produziram um tal vácuo de poder que o Congresso viu a oportunidade de substituir o presidencialismo de coalizão nascido no fim da ditadura por um parlamentarismo de conchavo, financiado pelo orçamento secreto, no qual deputados e senadores colhem o bônus e se livram do ônus das decisões. Seria imprudente manter certas ilusões quanto aos compromissos democráticos e republicanos de quem manda no País e de quem os representa em Brasília, por mais que o presidente da República se orgulhe de suas habilidades de negociador.

Lula tem a oportunidade de tomar as rédeas da iniciativa política. A campanha de 2026 está nas ruas

As peças da oposição estão distribuídas no tabuleiro. O espírito do lacerdismo tomou o corpo da oposição, que semeia agora para colher em 2026. Adapta-se a famosa frase de Carlos Lacerda: “O senhor Lula não deve ser candidato, se for candidato não deve ser eleito, se for eleito, não deve tomar posse, se tomar posse, não deve governar”. De quebra, a associação entre o Centrão e o bolsonarismo planeja a vingança contra o STF, último dique contra a barbárie política, econômica e social. Dois convescotes recentes patrocinados por empresários em São Paulo não foram mera coincidência. Em um, Motta celebrou o Parlamento “aguerrido, pronto para fazer um enfrentamento a favor do País” (leia-se, em prol da turma da bufunfa). Em outro, o governador Tarcísio de Freitas, ungido pela Faria Lima como o anti-Lula da vez, prometeu o indulto a Bolsonaro (e aos demais golpistas) caso vença as eleições presidenciais do próximo ano. Atento aos movimentos nas penumbras, um ex-ministro petista sugere que o governo pare de jogar palitinhos, enquanto o Centrão e a extrema-direita manejam peões, cavalos, torres e o rei.

Terá Lula entendido que o mais grave problema do governo não é a comunicação, mas a política? Ou a falta dela? Os petistas podem até considerar injustas, e, dados os avanços, elas realmente são, mas diferentes pesquisas realizadas em diferentes momentos mostram que, aos olhos dos eleitores, a acusação de uma administração perdulária, ávida por impostos e “ultrapassada” supera, ao menos por ora, os inegáveis resultados na geração de emprego e renda, na reorganização do Estado e na recuperação da imagem internacional do País. Há tempo, dizem alguns, embora o tempo continue a escorrer pelos dedos.

A prepotência do Centrão e do bolsonarismo, reafirmada por Motta e por ­Davi Alcolumbre, comandante do Senado, criaram, no entanto, as condições para o presidente da República tomar as rédeas. As mesmas pesquisas que trazem más notícias também apontam caminhos possíveis. Uma expressiva maioria dos brasileiros é a favor de uma tributação mais justa, que reduza a carga dos mais pobres e expulse os endinheirados do paraíso fiscal criado por eles mesmos ao longo de décadas de captura dos poderes da República. O fim da jornada 6 por 1 é outra bandeira de enorme apelo popular e só um governo progressista teria disposição e legitimidade para empunhá-la. Às vezes, mais importante do que uma vitória é a disposição com a qual se luta. E em determinadas situações, só se combate fogo com fogo. •

Publicado na edição n° 1369 de CartaCapital, em 09 de julho de 2025.

 

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