sábado, 5 de julho de 2025

A faca e o queijo - André Barrocal

CartaCapital

Ao antecipar a disputa eleitoral, o Congresso dá ao governo um discurso de campanha

As 11h35 da noite de 24 de junho, uma terça-feira, o ­deputado Hugo Motta, presidente da Câmara, anunciou no ex-Twitter a ­pauta do plenário do dia seguinte. A proposta do PL de Jair Bolsonaro de derrubar o decreto de Lula a respeito do Imposto sobre Operações Financeiras, o IOF, estava na lista. Gleisi Hoffmann, ministra da Articulação Política, surpreendeu-se. E telefonou para o titular da Fazenda, Fernando Haddad. Acordado pela ligação, o ministro perguntou se a colega havia procurado Motta. Hoffmann entrou em contato com o deputado e ouviu que a decisão era irreversível. Haddad ainda tentou falar com o parlamentar pela manhã, antes da votação. Uma semana depois, ainda esperava o retorno do telefonema.

A proposta da oposição contra os decretos presidenciais acabaria aprovada na Câmara e no Senado no mesmo dia. Derrota histórica do governo. A última vez que algo semelhante aconteceu foi em 1992. Em 1º de julho, Lula recorreu ao Supremo Tribunal Federal para tentar ressuscitar as normas. O caso está com Alexandre de Moraes, o juiz da ação penal contra Bolsonaro por tentativa de golpe. O capitão tem planos de controlar o Congresso a partir de 2027 com a eleição de aliados em 2026. Em especial o Senado, a quem cabe aprovar, e cassar, magistrados do STF. Por esse motivo, os superpoderes do Legislativo, alimentados pela explosão financeira das emendas parlamentares, não é do interesse da Corte. Emendas que são uma das causas da revolta congressual contra o decreto de Lula e que estão na mira de uma cruzada moralizadora de outro integrante do Supremo, Flávio Dino.

Motta não imaginava que o governo recorreria à Corte, esperava que Lula engolisse calado, conforme aliados sopraram a jornalistas. Muito menos que daria ao presidente e ao PT a chance de sair das cordas no debate público. Como reação à derrota, Lula e o partido botaram na rua, antes do pretendido, planos para a batalha em torno da lei de isenção total de imposto de renda para salários de até 5 mil reais e de isenção parcial para contracheques de até 7 mil. O objetivo é construir a imagem de que, ao tentar cumprir uma promessa da campanha de 2022, “Lula lidera a maior virada de justiça tributária na história do País” e tem “coragem para enfrentar poderosos”. Uma reedição do discurso de “pobres contra ricos” marcante no segundo mandato do petista, algo que agora empurra o Congresso para a posição de vilão defensor da elite e de privilegiados.

Os planos começaram a ser elaborados no início do ano, na época do envio ao Congresso, por Lula, da lei da isenção do IR. Caso a lei seja aprovada, o governo beneficiará 15 milhões de contribuintes e perderá 25 bilhões de reais em arrecadação anual. Para cobrir o buraco, propõe cobrar um imposto mínimo de 10% dos super-ricos, gente com renda superior a 1 milhão de reais por ano. Eis o pepino para passar a lei no Congresso: mandar a conta aos milionários. Para tentar obter apoio da opinião pública e dobrar deputados e senadores, o PT encomendou estudos ao marqueteiro do partido, Otávio Antunes, integrante da equipe de João Santana na campanha de Dilma Rousseff em 2014. A partir de pesquisas quantitativas e qualitativas, Antunes concluiu que a melhor maneira de “vender” a batalha do IR à população é realçar que se trata de “justiça histórica”. Segundo ele, esse discurso é capaz de transmitir esperança e oferecer um horizonte inspirador ao povão.

A primeira etapa da campanha, colocada nas redes sociais logo após a derrubada dos decretos do IOF no Congresso, centra-se na ideia de “taxação BBB”, ou seja, de bilionários, bancos e bets. Com os decretos, o governo tentou fechar brechas que, acredita, têm sido usadas pelos ricos para driblar o tributo. Quando baixaram a última versão do édito, em 11 de junho, Lula e Haddad haviam assinado ainda uma medida provisória com mais taxação para bancos digitais e casas ­online de apostas, as bets. As medidas buscam promover ajuste nas contas públicas sem cortar na área social. Eis a conexão delas com a batalha da isenção do imposto de renda: a “cobertura” paga a conta.

O monitoramento feito pelo PT das redes sociais mostra que a estratégia tem dado certo nestes primeiros dias. A simpatia a Lula aumentou. Segundo pesquisas recentes do instituto Atlasintel para clientes do “mercado”, o ibope de Lula e seu governo subiu, idem a intenção de votos no presidente, na dianteira contra todos os rivais. “A gente acertou na embocadura, ficamos dois anos nas cordas”, afirmou na quarta-feira 2 o secretário nacional de comunicação do PT, o deputado ­paulista Jilmar Tatto, em debate ­online com apoiadores petistas. “A guerra é sobre distribuição de renda. Para isso o Lula foi eleito (…). Eles nos chamaram para a briga, e nós somos bons de briga.” No debate, o advogado Marco Aurélio de Carvalho comentou que Lula e o PT têm de “agradecer” a Motta por, involuntariamente, ter permitido a reação.

O presidente e o ministro Haddad saí­ram a campo, em eventos e entrevistas, a martelar a ideia de “justiça tributária”, de combate a privilégios e de defesa do povão. Em 27 de junho em Tocantins, o presidente disse, sem citar a palavra “ricos”, que estes não gostam dele porque ele prefere encontrar catadores de lixo às vésperas do Natal, em vez de “tomar uisquezinho” e “jogar golfe com eles (os ricos)”. Em 1º de julho, durante um ato no Palácio do Planalto, comentou haver “uma rebelião” quando se tenta taxar um pouco mais os milionários e que isso acontece por “ganância, a desgraça da acumulação de riqueza”. E arrematou: “Queremos apenas diminuir os privilégios de alguns para dar um pouco de direito pros outros”.

No mesmo evento, Haddad declarou ter chegado a “hora de buscar crescimento com justiça social”. E que continuará a apontar a injustiça do sistema tributário, uma das causas da pornográfica concentração de renda nacional. Um estudo de junho do banco suíço UBS com 56 paí­ses constatou que o Brasil é campeão de milionários na América Latina e de desigualdade social entre as nações pesquisadas. Só políticas sociais e mercado de trabalho não conseguem mais produzir mobilidade social no Brasil, é preciso atacar a injustiça tributária, na avaliação de Francisco Mata Machado Tavares, professor da Universidade Federal de Goiás e um dos coordenadores do Observatório Brasileiro do Sistema ­Tributário, parceria da UFG com o Sindifisco, o sindicato dos auditores da Receita Federal. “A verdade incomoda”, disse Haddad no Planalto.

Programas sociais e geração de empregos não bastam mais. É preciso atacar a desigualdade

Líder do PT na Câmara e crítico do ministro da Fazenda no primeiro biênio de Lula, em razão do arcabouço fiscal, amarra nos gastos federais, o deputado Lindbgerh Farias vê o governo unificado como nunca desde 2023. Todas as principais figuras no entorno do presidente estão na trincheira da justiça tributária, casos de Haddad, Hoffmann e do chefe da Casa Civil, Rui Costa. Os dois últimos tiveram atritos com a Fazenda devido a certas ortodoxias. “Não é um projeto eleitoral para 2026, como a mídia diz. É um projeto de país, uma tentativa de transformação estrutural do Brasil, além de cumprimento de promessas de Lula em 2022.” Na campanha, recorde-se, o presidente prometeu, entre outras coisas, “colocar o rico no imposto de renda”. “Ele está firme e muito animado nessa disputa. Me disse que o governo reduziu a pobreza e a fome e que é hora de reduzir a desigualdade”, conta Farias.

Um colaborador direto de Lula admite que a estratégia de “luta de classes” tem um risco, a reação do Congresso. ­Motta e o presidente do Senado, ­Davi ­Alcolumbre, têm mandado recados de que não aceitam o discurso de “ricos contra pobres”. Nas redes sociais, a militância petista e progressista tem sido impiedosa com o Congresso em geral e com Motta, em particular. O deputado não se ajuda. Gosta de convescotes com a elite. Em 7 de junho, participou de seminário do think tank, vulgo escritório de lobby, Esfera Brasil, comandado pelo presidente do conselho da CNN Brasil, João Camargo. O maior acionista da emissora, Rubens Menin, é também dono do banco digital Inter, e o governo quer cobrar mais impostos das fintechs. Em 30 de junho, Motta jantou com a turma do grupo Lide, de João Doria Jr., outro espaço de reunião (e defesa) da elite. No mesmo dia, provocou em um vídeo publicado nas redes sociais: “Quem alimenta o ‘nós contra eles’ acaba governando contra todos”.

Enquanto a militância bate, as autoridades governamentais afagam. Na quarta-feira 2, a ministra Gleisi Hoffmann foi às redes sociais defender o Legislativo. Em um tuíte, agradeceu a “grande contribuição” de deputados e senadores para a aprovação de duas medidas provisórias naquele dia. Em outro, defendeu Motta de “ataques pessoais e desqualificados”. O governo decidiu, por ora, ser firme no embate com o Legislativo, mas sem uma guerra aberta, nem dinamitar pontes. Ao anunciar a ação no Supremo para ressuscitar os decretos de Lula, o advogado-geral da União, Jorge Messias, ressaltou se tratar de uma iniciativa a favor do presidente, não contra o Parlamento. Enquanto a AGU estudava como recorrer ao STF, Haddad consultava juristas de fora do governo. Um dos pareceres que recebeu, de 29 de junho, é dos advogados constitucionalistas Pedro Serrano, colunista de CartaCapital, Lenio Streck e Gisele Cittadino. Segundo o trio, Lula calibrou as alíquotas do IOF nos parâmetros existentes em lei e podia, sim, tê-lo feito com fins arrecadatórios. Ao barrar a norma, prosseguem os três, o Congresso criou “um conflito entre os poderes do Estado inédito na nossa história recente”, graças a “uma interpretação absolutamente desvirtuada e distorcida” da Constituição, para “instabilizar o próprio sistema presidencialista”.

A ação da AGU diz coisa parecida, embora destaque objetivos regulatórios na medida, além de arrecadatórios. E acrescentou outro argumento. O Congresso teria invadido a competência exclusiva do Supremo ao decidir que um presidencial feriu a Carta Magna. “O presidente compreende que a Constituição de 88 estabelece um sistema de governo, que é o presidencialismo. E ele está, com essa ação, defendendo um sistema de governo, que é o presidencialismo”, afirmou Messias em entrevista coletiva.

Em 4 de junho, o PL de Bolsonaro tinha ido à Corte tentar anular o decreto de Lula, e o processo fora distribuído por sorteio eletrônico a Alexandre de Moraes. A partir deste momento, o magistrado tornou-se, como se diz no juridiquês, “prevento” na Corte no tema. Todos casos encaminhados ao tribunal sobre o decreto do IOF ficarão com ele. Foi o que ocorreu ainda com uma ação do PSOL, de 27 de junho, contra a decisão do Congresso. O fato de Moraes não ter concedido a liminar requerida pelo PL anima Messias quanto às chances de vitória do governo. Para ele, significa que os advogados do partido não foram capazes de convencer o juiz.

Não é do interesse do tribunal o fortalecimento do Congresso. Bolsonaro foi um dos responsáveis pela hipertrofia legislativa ao ter abençoado, no governo, o famigerado “orçamento secreto”, forma particularmente malandra de emenda parlamentar. O capitão sonha em capturar o Congresso na eleição de 2026 e transformá-lo em um bunker contra os adversários, incluído o Supremo. Foi o que o próprio comentou em 29 de junho, em ato esvaziado na Avenida Paulista em defesa de anistia para si mesmo. “Se vocês me derem, por ocasião das eleições do ano que vem, 50% da Câmara e 50% do Senado, eu mudo o destino do Brasil (…) Se vocês me derem isso, não interessa onde esteja, aqui ou no além, quem assumir a liderança vai mandar mais que o presidente da República”. Apesar de ter citado a Câmara, sonha é com o Senado. Cabe a esta casa aprovar diretores do Banco Central e das agências reguladoras, além de juízes dos tribunais superiores. Três magistrados do STF vão se aposentar no próximo governo: Carmen Lúcia em 2029, Gilmar Mendes em 2030 e Luiz Fux em 2028.

Não está claro como o Parlamento vai reagir à pecha de “vilão”

Outro motivo, a verdadeira explicação, para o sonho bolsonarista: é do Senado o poder de cassar integrantes do STF. Na mira está Moraes, o relator da ação penal por tentativa de golpe. Eis por que o ex-presidente cogita apostar na família para a disputa de vagas a senador. Os filhos Carlos e Eduardo concorreriam em Santa Catarina e São Paulo, respectivamente, o primogênito Flávio tentaria a reeleição no Rio de Janeiro e a esposa Michelle, uma vaga pelo Distrito Federal.

O senador pernambucano Humberto Costa, comandante interino do PT, considera a eleição para o Senado tão importante quanto a sucessão de Lula. Costa fez chegar ao presidente há algumas semanas um mapa com o cenário que hoje se desenha para as campanhas de senadores. Um quadro desolador para o governismo. A extrema-direita tem chances reais de tomar conta da Casa a partir de 2027, por isso a legenda projeta um festival de alianças com candidatos da dita direita moderada.

O líder do governo no Senado, Jaques Wagner, da Bahia, tem preocupações semelhantes. Antevê um “problema grave” em um eventual quarto mandato de Lula, caso seja majoritária entre os senadores a atitude que ele considera “fanatizadora” da extrema-direita. Wagner é o principal conselheiro do presidente, segundo um veterano petista. Às vezes vai ao Palácio da Alvorada cedo e conversa com Lula enquanto este faz exercícios físicos. Foi um dos primeiros a encontrá-lo após a derrota no IOF, que considera um episódio “bastante traumático”. Lula estava muito contrariado. Para o senador baiano, o gigantismo das emendas parlamentares, mais de 50 bilhões de reais­ por ano, afeta a relação do governo com o Congresso. Tornaram-se, segundo ele, “oxigênio do Parlamento”, daí o presidente enfrentar mais dificuldades políticas do que nos governos anteriores.

Até a conclusão desta reportagem, na manhã de 3 de julho, a revolta do Congresso contra Lula não tinha por parte do governo um diagnóstico definitivo sobre suas causas. É certo, porém, que um dos fatores principais são as emendas parlamentares. Um dos vice-líderes do governo na Câmara afirma que o fator “Flávio Dino” alimentou a ira congressual. Segundo ele, deputados e senadores creem que o juiz acabará com a impositividade das emendas. No orçamento deste ano, dos 50 bilhões de reais, 38 bilhões têm caráter impositivo, ou seja, o governo é obrigado a pagar, só lhe resta decidir quando. Em 2024, o PSOL foi ao Supremo contra a impositividade. Em 27 de junho passado, a Corte realizou uma audiência pública sobre a ação. Ao convocá-la, Dino deixou claro que o processo está perto do fim. “Os subsídios colhidos na Audiência Pública”, escreveu, “serão enviados à Procuradoria-Geral da República e à Advocacia-Geral da União, a fim de que haja o pronunciamento final antes do julgamento” no plenário.

Motta e Alcolumbre tinham confirmado presença na audiência, mas não apareceram. Duas horas antes do início da sessão, a Polícia Federal voltou às ruas na Bahia contra corrupção em emendas, em mais uma fase da Operação Overclean.­ Foi autorizada por outro juiz do Supremo, Kássio Nunes Marques. A história investigada é conhecida quando o assunto é emenda. Algum gabinete legislativo emplacou uma e, no destino da verba, teria havido bandalheira. Os alvos agora foram um deputado do PDT, Felix Mendonça, e um assessor, Marcelo Chaves Gomes, ambos atingidos por buscas. Dois prefeitos foram afastados, o de Ibitanga, Humberto Raimundo Rodrigues de Oliveira, do PT, e o de Ibitanga, Alan Machado, do PSB. Ambos foram presos em flagrante por porte ilegal de armas. Um ex-prefeito de Paratinga, o petista Marcel José Carneiro de Carvalho, também foi alvo. A PF achou 3 milhões em dinheiro vivo em um endereço de Carvalho.

O Centrão e o bolsonarismo unem-se para fazer do Congresso um bunker

É possível que até o fim do ano o Supremo julgue os primeiros parlamentares acusados de corrupção com emendas. Trata-se de um trio do PL de Bolsonaro: Josimar do Maranhãozinho e Pastor Gil, do Maranhão, e Bosco Costa, de Sergipe. O relator do processo, Cristiano Zanin, marcou 12 dias de interrogatórios para agosto.

Outro fator da revolta congressual é a eleição de 2026, na visão de Lindbergh­ Farias. Em 31 de março, o senador piauiense Ciro Nogueira, que comanda do PP e foi ministro de Bolsonaro, participou de um evento a portas fechadas no banco BTG, em São Paulo. “O Congresso vai ser o dique de contenção das medidas que eu acredito que o governo vai querer tomar daqui por diante pra tentar reverter a questão de popularidade”, disse Nogueira na reunião, conforme áudio obtido pelo canal online ICL Notícias. “Agora é focar em criar uma base política (para quem vier a ser o presidenciável do direitismo) no próximo ano.”

Afastar de Lula aqueles partidos com ministério é um bom caminho para “criar uma base política” para o direitismo, e nada melhor que uma crise na busca do objetivo. O desfecho depende da própria dinâmica dos embates em Brasília e da disposição de Lula e do PT para ir até o fim a favor de mais justiça tributária. •

Publicado na edição n° 1369 de CartaCapital, em 09 de julho de 2025.

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