domingo, 3 de março de 2019

Leandro Karnal: O barulho democrático

- O Estado de S. Paulo

Para Umberto Eco, a internet deu a certeza ao idiota da aldeia de que ele tudo sabe e sua opinião é a mais correta

Existir é opinar. Tenho considerações sobre culinária ao comer, sobre moda ao vestir, sobre política ao votar e sobre planejamento econômico ao negar dinheiro a um filho. A opinião (doxa para os gregos) envolve minha experiência real, meus gostos subjetivos, minha razão e minha passionalidade. Raramente, minhas opiniões são embasadas em muita reflexão ou em dados. Todos nós dialogamos com o mundo do senso comum e da subjetividade. Argumentos objetivos e verificáveis existem, mas escasseiam nas discussões diárias. Em casos ainda mais raros, temos uma formação profissional/acadêmica sólida que envolveu reflexão prévia e pesquisas anteriores sobre o que falamos. Falamos mais do que pensamos.

Hoje há uma tripla força para que as opiniões subjetivas e pessoais ganhem destaque. A primeira linha é o estado democrático de direito, vigente há mais de 30 anos no Brasil. Liberdade de expressão é garantida pela Constituição. A segunda força é o crescimento do sujeito como definidor de uma realidade que deve ser respeitada por causa da vontade. “Por que essa profissão? Por que fez tal escolha de casamento?” A resposta que encerra tudo é “porque eu gosto”. O declínio do dever ou da norma e a ascensão do desejo como instaurador de validade são recentes e mereceriam muita análise. A terceira e última força se chama rede social. Não apenas eu tenho o direito, eu também penso assim e, por fim, posso publicar para milhões a minha infinita subjetividade. Estamos no apogeu da doxa como o grande critério da comunicação.

Hoje em dia, qualquer pessoa pode (e fala/escreve) sobre tudo. Vivemos o império da opinião. Os jornais e outras mídias mais tradicionais, para sobreviverem, têm de se abrir ao outrora passivo leitor/espectador. Como funciona atualmente? Você lê uma notícia ou uma coluna e, logo abaixo, os comentários dos leitores! Muitas vezes, temos mais opiniões sobre a notícia do que texto na notícia. Todos querem falar o que pensam. Não raro, há debates entre os leitores, que se esgrimam por suas opiniões. No rádio não é diferente; tampouco na TV. No mais das vezes, se não moderados, são lugares de ofensas, de anonimato, de violência, de lugares-comuns. Isso levou Umberto Eco a emitir sua antipática (e verdadeira?) sentença de que a internet (e principalmente as redes sociais) deu a certeza ao idiota da aldeia de que ele não apenas tem voz; concedeu-lhe a certeza de que tudo sabe; de que sua opinião é a melhor, a mais correta.

Vejamos mais de perto o problema. Alguns antigos atenienses consideravam a opinião como algo ruim, todavia possível. Para eles, opinar era apenas expressar uma crença irrefletida, uma lógica de senso comum incapaz de ser boa por não conter, em si, nenhum quinhão de reflexão: não se pensava na validade do que se falava nem nas premissas do que se dizia, tampouco nos meios pelos quais e para os quais se opinava. Se lermos trechos pequenos do Banquete de Platão, veremos Sócrates demonstrar isso perguntando a opinião de soldados e outros sobre as coisas mais banais, para então, por meio de sua maiêutica, solapar as minicertezas que saíam seguras das bocas de seus interlocutores. Aristófanes, o comediógrafo, achincalhou Sócrates, sofistas, juízes, políticos e tantos outros em suas peças, pois, para ele, apenas emitiam opiniões e isso contribuía para o solapamento da democracia e o fortalecimento da demagogia.

O poder da persuasão, daquele que manipula com sua opinião, talvez seja o mote da peça As Aves, em que uma utopia é revertida numa tirania apenas pelo convencimento. A tradição do teatro manteve viva a crítica à opinião e, milênios depois de Aristófanes, Molière ironizava as opiniões rasas de um ex-comerciante enobrecido em O Burguês Fidalgo. Em resumo: há uma linha (tênue, entretanto há) entre Aristófanes, Molière e Eco, uma espécie de satanização do idiota que fala. Por trás disso, há a noção de que aquele que é fechado em si mesmo (o idiota na raiz da palavra) seja o avesso do que realmente precisa a arena pública. Se a democracia for entendida como o espaço em que apenas os que realmente estão dispostos ou são capazes de pensar o espaço público sejam chamados à Assembleia (Pnyx), eles estão corretos.

Por outro lado, se uma característica da democracia é a mais absoluta liberdade de expressão, eles são apenas conservadores rancorosos. Pois qual seria a alternativa a dar voz aos idiotas? A censura prévia, a ditadura? Nos críticos há um suspiro aristocratizante, mas também um ponto nevrálgico. Questão complexa: quem pode dar opinião? Quem está realmente disposto a ouvir uma opinião e ponderar a partir dela? Quem definiria o que é idiota do que é sábio?

A solução é complexa e passa por diversos níveis. Um deles é pessoal. Devo saber que tenho direito a pensar por mim mesmo, no entanto jamais serei especialista em tudo. Ter opinião sobre tudo, portanto, torna-me um idiota, querendo ou não. Um segundo nível é público, coletivo: a educação no século 21 tem de encarar de frente o papel de registrar a capacidade da construção de argumentos, da arte do diálogo, do debate. Teremos mais gente versada e com capacidade de dialogar. Em uma esfera legal, devemos ser duros (e justos) quando a opinião extrapola seus limites ou flerta com o ilógico. Leis não podem ser feitas tendo como base a opinião de alguém sobre um assunto; uma pessoa ofendida pela opinião alheia pode exigir reparação. Ainda assim e sempre: é melhor o charabiá dos idiotas em um estado democrático de direito do que a mordaça silenciosa das ditaduras. Bom domingo para todos nós.

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