- O Globo
Da literatura sobre o papel do ‘Green Book’ brotam relatos de medo
Dica para os inconformados com o Oscar de melhor filme para “Green Book” na cerimônia de domingo passado: jogar fora o enredo da obra de ficção, desconsiderar os personagens da vida real que a inspiraram, e mergulhar na importância histórica do livrinho que dá titulo ao filme. Aprende-se montes à margem da folia pagã do carnaval.
Nos anos 1930, os Estados Unidos ainda eram um país dividido em espaços brancos e negros, sem fresta para transgressões. Mas, por dever de ofício, um empregado dos Correios de Nova York, e morador do Harlem, Victor Hugo Green, conhecia como poucos a geografia racial da cidade. E foi baseado na vivência própria somada às recomendações de outros carteiros negros que ele elaborou um guia de 15 páginas contendo dicas de locais e orientações para viajantes se orientarem na região metropolitana de Nova York.
Lançado em 1936, com o título de “The Negro Motorist Green-Book”, o manual representou uma bússola para a classe média negra emergente que abraçara o automóvel como ferramenta de alforria. Ao volante em estradas, o motorista segregado escapava da indignidade do transporte público — trens ou ônibus —, onde assentos dependiam da cor da pele. Era a conquista do controle de onde se sentar.
Inspirado em guias publicados pela e para a comunidade judaica americana às vésperas da Segunda Guerra Mundial, o manual de Green expandiu-se de imediato, passou a mapear o país inteiro, e teve atualizações até o ano de 1967. Sempre com dicas de hotéis, tabernas, estacionamentos, night clubs, restaurantes, barbeiros, parques de diversão, lojas e tudo o mais que salva ou faz naufragar uma incursão em terra estrangeira.
Para um viajante negro pré-Direitos Civis das décadas de 1940 e 1950 que inspiraram o filme, a liberdade de assumir o volante da vida continha riscos. Por falta de garantia de achar um banheiro que pudesse usar ao longo do trajeto, muitas famílias levavam penicos em seus robustos Buicks ou espaçosos Cadillacs. Além de comida, cobertores e gasolina extra, é claro. Em 1947, Green abriu uma agência de viagens e empenhou-se em fazer chegar o guia à rede de postos de gasolina Esso (hoje ExxonMobil), de grande capilaridade nos Estados Unidos e única produtora de petróleo a receber freguesia negra. Ambos saíram lucrando.
O cineasta Ric Burns, irmão e parceiro do celebrado Ken Burns, de “A Guerra do Vietnã”, “Jazz” e “A Guerra Civil”, está finalizando com a historiadora Gretchen Sullivan Sorin um documentário sobre o tema: “Driving While Black” (algo como “dirigir sendo negro”), com lançamento previsto para o primeiro trimestre deste ano. Sorin explica a preferência da época por automóveis robustos e espaçosos pela função múltipla da posse: além de meio de transporte, o carrão também fazia as vezes de restaurante e hotel para a família em viagem de férias. E de status. Como por ser negro você não conseguia comprar uma casa ou pagar uma hipoteca, você então investia num automóvel o que não bastava para o teto próprio.
Da literatura sobre o papel do “Green Book” brotam relatos de medo e agonia para viajantes negros quando se aproximavam das chamadas sundown towns, cidades em que a circulação de não brancos estava proibida após o pôr do sol. Era encostar o carro na estrada sob alguma árvore, e aguardar o amanhecer com fervor. “Não importava se você fosse Lena Horne ou Duke Ellington”, contou a nova-iorquina Calvin Alexander Ramsey, outra cineasta que finaliza um documentário centrado na vida do carteiro visionário.
Nesta viagem ao passado, vale registrar dois históricos estabelecimentos que serviram de oásis para visitantes negros a Nova Orleans: o Marsalis Mansion Motel, fundado pelo patriarca da celebrada dinastia de músicos de jazz, e o restaurante Dooky Chase, que teve entre seus clientes o escritor James Baldwin e Thurgood Marshall, primeiro juiz negro da Suprema Corte dos Estados Unidos.
“Chegará o dia, num futuro próximo, em que este guia deixará de ser necessário. Para nós, será estupendo suspender esta publicação, pois poderemos então ir aonde quisermos, sem constrangimento”, escreveu Victor Green no prefácio da edição de 1949. Foi otimista. O último volume data de 1967, portanto três anos depois da aprovação da Lei dos Direitos Civis que baniu a segregação racial. Final da história? Não.
Ainda pouco tempo atrás, a NAACP, centenária entidade de defesa dos direitos civis dos Estados Unidos, emitiu um alerta de “extremo cuidado” dirigido a negros em viagem ou de passagem por Missouri “... devido à série de recentes incidentes raciais ocorridos no estado...”. O tradicional guia Fodor, de circulação mundial, seguiu a recomendação em sua edição de 2018. E a leitura do noticiário de 2019 sugere que o tema abordado 80 anos atrás merece mais do que um filme de ficção no qual “The Negro Motorist Green Book” faz papel de mero figurante.
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