Com a proposta de reforma da Previdência apresentada ao Congresso, o governo federal não deseja apenas alterar as regras para concessão de aposentadorias e pensões. A proposta inclui mudar o próprio local onde essas regras estão previstas. Atualmente, boa parte dessas regras está na Constituição e, portanto, só uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) pode alterá-las. O Executivo propõe que a Previdência seja regulada por lei complementar.
O secretário de Previdência Social do Ministério da Economia, Leonardo Rolim, lembrou que o Brasil é o único país do mundo em que a Constituição fixa parâmetros para a concessão de aposentadorias e pensões. “A Constituição tem que ser uma coisa estável, não pode ficar alterando toda hora”, disse Rolim em entrevista ao Broadcast.
Uma alteração na Constituição exige votação em dois turnos em cada Casa, com quórum de três quintos. São necessários 308 votos na Câmara e 49 no Senado. Para aprovar um projeto de lei complementar, basta maioria absoluta em único turno: 257 votos na Câmara e 41 no Senado.
A proposta do governo de retirar a Previdência da Constituição faz todo sentido. Não há razão, por exemplo, para que a idade mínima para se aposentar esteja determinada na Carta Magna. Trata-se de um parâmetro que exige constante atualização diante da realidade econômica e demográfica do País. A idade mínima não é uma questão de natureza constitucional, que esteja vinculada às garantias e liberdades fundamentais ou aos fundamentos do Estado.
Tal disfuncionalidade do texto constitucional não está restrita a temas previdenciários. Ao longo de seus 250 artigos, além dos 114 artigos das Disposições Constitucionais Transitórias, verifica-se no texto constitucional a indevida presença de assuntos sem natureza constitucional. Esse inchaço causa desequilíbrios no ordenamento jurídico e afeta o funcionamento dos Três Poderes.
Não é à toa, por exemplo, que o Supremo Tribunal Federal (STF), cuja principal missão é guardar a Constituição, seja demandado em uma infinidade de processos, pelo próprio Estado, empresas e pessoas que tentam reverter decisões de instâncias inferiores. A incrível abrangência do texto constitucional torna possível vislumbrar em quase todas as ações judiciais alguma questão referente à Carta de 1988.
O Legislativo também sofre com o inchaço da Constituição. A tramitação de uma PEC é muito mais complexa do que a de um projeto de lei ordinária ou complementar. O processo legislativo, que habitualmente já tem uma imensa pauta, se vê sobrecarregado por muitas demandas de modificação do texto constitucional. A esse respeito, não se pode acusar o Congresso de lentidão, pois já aprovou 99 Emendas Constitucionais (EC), além de 6 Emendas Constitucionais de Revisão (ECR).
São também evidentes os problemas que o inchaço constitucional causa ao Poder Executivo. É o caso da reforma da Previdência. Não bastasse ser um tema impopular, o governo tem de se organizar para conseguir, em dois turnos, o voto de 308 deputados e de 49 senadores. Se as regras relativas a aposentadorias e pensões não tivessem status constitucional, sua atualização demandaria muito menos esforço e levaria muito menos tempo. Uma Constituição mais enxuta possibilita um Estado mais ágil e mais eficiente – mais capaz de dar a tempo respostas adequadas aos problemas que surgem.
A Constituição deve ser preservada para aquilo que é essencial à organização do Estado e aos direitos e garantias fundamentais. Um sistema jurídico engessado sempre estará defasado ante a realidade econômica e social, muito especialmente no mundo atual, com seu ritmo acelerado de mudança. Uma Constituição mais enxuta possibilita também vislumbrar com mais nitidez as garantias realmente fundamentais. Ou seja, desconstitucionalizar o que não deve estar na Constituição é valorizar o núcleo de direitos e garantias que devem ter status constitucional. Enxugar a Constituição é, portanto, um modo de respeitá-la.
Não é fácil desobstruir de tantos e tão enraizados obstáculos o caminho para o desenvolvimento do Brasil, mas há boas notícias. Vendedores de soluções mágicas têm sido rejeitados e parcela crescente da sociedade parece enfim convencida a encarar reformas sacrificantes, como na Previdência.
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