- Folha de S. Paulo
Ministros de Bolsonaro se dividem entre cultos a deus nacionalista e a demônios do mercado
“Eu te amo, meu Brasil, eu te amo. Ninguém segura a juventude do Brasil.” Dom e Ravel popularizaram esses versos em 1970, quando estudantes eram obrigados a hastear a bandeira e cantar o hino nacional. Esse ufanismo de meio século ressuscitou com a “nova política”.
O governo Bolsonaro veio moralizar o Brasil. O presidente, seus filhos e seus ministros se revezam na tarefa. Carlos pôs Bebianno para pagar o pato dos laranjas, depois do ministro do Exterior e de sua colega da Família declararem guerra a globalistas e a meninos de rosa. Agora chegou a vez dos titulares da Economia e da Educação.
Cada qual compreendeu a seu modo o sentido de “moralizar”. Para Guedes, é sinônimo de privatizar. Quer neoliberalizar até o Censo Demográfico, na linha “small is beautiful”.
Em desacordo com especialistas que formulam questionários desde 1872, sugeriu reduzi-los a dez perguntas, supondo que, se o Estado tiver muita informação, em vez de governar melhor, acabará “descobrindo coisas que nem queria saber”.
Economia dupla, de enxaquecas e de recursos, pois o financiamento viria da venda de prédios do IBGE. Uma desestatização tão promissora como a da telefonia móvel, que, opina Guedes, teria democratizado os serviços, inclusive o mais antigo deles: “Prostituta... Todo mundo marca seus programas pelos meios digitais. É progresso para todo mundo”.
Este “progresso” é um dos padrões morais que o governo quer impor ao país. Padrões, no plural, porque se trata de moralidade bifronte. Há o liberalismo pró-Estado mínimo e a liberalidade de costumes de um ministro e há o intervencionismo estatal e a polícia política de outros.
O da Educação propugna o ativismo estatal para empurrar deveres cívicos e religiosos pela goela dos cidadãos. Ordenou a alunos e mestres “saudar o Brasil dos novos tempos”, com hino, bandeira e o bordão bolsonarista de honra a Deus e à pátria.
Tempos, avisara, de reformar “canibais” ladrões de “assentos salva-vidas de aviões”. “Esse é o tipo de coisa que tem de ser revertido na escola.” Donde a ideia da carta a colégios públicos e particulares, exigindo reforçar o patriotismo e cometer ao menos quatro infrações: vigiar professores, expor crianças, difundir slogan partidário com recursos estatais e atentar contra a laicidade do Estado.
Ao julgar tal medida prioritária, o ministro pensou menos na lei que na letra de Osório Duque-Estrada. Lembrou-se dos sete trechos de louvor à “pátria”, mas ignorou duas ocorrências de “seio”, que, por seu raciocínio, podem estimular a libido infantil. Se vier a excluí-las, pode limar junto as indigestas “igualdade”, típica do “marxismo cultural”, e “liberdade”, que não combina com vigilância escolar. Tampouco fica bem manter “justiça” quando o governo impõe crenças a estudantes e a educadores.
De várias partes da sociedade vieram brados também retumbantes, mas em contrário. Vídeos reportaram carências escolares —de teto a lápis, de professor e de vaga— mais prementes que a falta de amor à pátria. A desfaçatez ganhou a ironia das redes e a nota vermelha até de aliados, como o movimento Escola sem Partido.
Vélez apressou-se em se desdizer, não sem antes angariar apoio no clã presidencial. No Twitter, Eduardo Bolsonaro enalteceu a pedagogia da ditadura: “Maioria das pessoas q nasceram nos anos 80 tiveram pais q estudaram em escolas públicas, tempos em que professor não era agredido, cantava-se o hino nacional e não música pornográfica”.
A catequização autoritária que o Ministério da Educação almeja se ancora em compreensão peculiar da cidadania. A retidão na vida pública dependeria do caráter moral dos indivíduos, forjado na família e na escola. Contudo, como o caso de Lúcifer esclarece, nem a educação divina produz anjos infensos ao pecado.
Tais crenças da comunidade moral bolsonarista conflitam com a defesa da liberdade individual —de mercado, mas também de consciência— pela ala liberal de Guedes.
Como Janus, o governo tem duas cabeças: uma mira o futuro, outra se amarra ao passado. A orientação liberal visa formar indivíduos autônomos, capazes de pensar por si. Já uma escola autoritária produz pessoas incapazes de escolhas próprias, mesmo as úteis ao mercado. Pode induzir meninos a usarem azul, mas não gesta bons cidadãos. Menos ainda previne corrupção ou remedia furto em aeronaves.
Cedo ou tarde, o presidente terá que escolher entre seus auxiliares que rezam a um deus punitivo e nacionalista e os que cultuam os demônios do mercado.
*Angela Alonso, professora de sociologia da USP, preside o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. É autora de “Flores, Votos e Balas”.
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