sábado, 22 de setembro de 2012

A cidade que se reinventa - Marco Aurélio Nogueira


A 15 dias das urnas, o cenário eleitoral de São Paulo parece ter estacionado. A consolidação de Celso Russomanno nas pesquisas de intenção de voto para a Prefeitura impressiona, mas não é o único fato a chamar atenção, nem dá para ser explicada simplesmente pela hipótese do voto religioso ou da polarização direita/esquerda. Há coisas no subsolo da vida urbana com maior poder de determinação.

Antes de tudo, é preciso considerar que o ingresso da cidade num modo de vida movido a conectividade intensiva, redes segmentadas, tribos de convivência, respostas individualizadas para problemas comuns e consumismo frenético reforçou e complicou a transformação que vinha ocorrendo na estratificação social.

Não mais existe a São Paulo sisuda e pujante dos anos 1950, nem a São Paulo dos migrantes dos anos 1960-1970 e assustada com seu próprio crescimento, que empurrou muita gente para bairros novos e modificou a feição de todos os bairros. A cidade foi deixando de ser da indústria, entregou-se aos bancos, ao comércio e aos serviços. Com o tempo, foram-se alterando os agrupamentos, as fronteiras sociais, os humores coletivos. A "velha e boa classe média" passou a conviver com uma "nova classe média", voraz e repleta de carências e expectativas, que impactou a cidade. Um "mercado eleitoral" se instituiu clonando o mercado propriamente dito: o cidadão, convertido em consumidor possessivo na economia, transferiu para a política seu modo de ser. Desinteressou-se de ideologias e agarrou-se ao que lhe parece mais útil, prático e confortável, que não lhe exige muito esforço de decodificação.

Tal processo, por um lado, aprofundou as relações entre negócios e política. Por outro, facilitou a banalização da ideia de "novo", tanto no consumo quanto nas escolhas eleitorais. A cidade passou a ser vista como necessitando de novidades políticas e estas, por sua vez, foram traduzidas pelo registro simples do "sangue novo", ou seja, pessoas mais jovens, pouco importando se elas, como no exemplo de Russomanno, expressem práticas tradicionais devidamente recozidas no caldeirão do marketing eleitoral.

O PMDB fez isso com Gabriel Chalita, que não conseguiu decolar. Fernando Haddad apresentou-se como renovação, mas a sombra ostensiva de Lula e o acordo com Paulo Maluf acabaram por bloqueá-lo. Dos principais candidatos, somente José Serra fugiu à regra, mas, mesmo assim, quis ser visto como candidato da mudança.

Um tipo específico de "despolitização" tendeu então a se fixar. Ele não expressa um desinteresse pela política em si, mas pela política feita por políticos e partidos; expressa inconscientemente a adesão a um Estado menos universalista e mais "protetor", voltado para o atendimento de demandas focalizadas, centradas nos mais carentes e nos que se sentem mais prejudicados pela vida. Por essa trilha foram encorpando os discursos que prometem "calor e afeto", mais que "obras e gestão".

Nesse contexto, Russomanno cresceu; Serra e Haddad, não - não souberam falar a nova língua. Serra teve poucas referências heroicas para mobilizar e Haddad não teve como se apropriar das referências heroicas que possui (Lula), pois carisma, como se sabe, não se transfere.

A cidade que se reinventou ao longo do tempo também se ressentiu de um forte deslocamento no plano da religiosidade. Os católicos perderam terreno para os evangélicos e estes, conduzidos em sua maioria por pastores de novo tipo, empresários da fé, em primeiro lugar fizeram da religião uma operação midiática e, depois, evangelizaram a política, convertendo-a em tema de cultos, conselhos e orientações, não de reflexão crítica e engajamento secular.

Celso Russomanno vestiu o figurino da evangelização. Beneficiou-se de uma exposição prévia que compensou extraordinariamente os poucos minutos de que dispõe no horário eleitoral. Foi ajudado pelo fato de não ter um partido a seguir-lhe os passos e a cobrar-lhe compromissos. Sua campanha foi de pastoreio, com tons que prometem uma época em que todos serão devidamente cuidados, guiados e respeitados.

Mas nada disso faria sentido se não houvesse a degradação urbana. A cidade gigante pulsa modernidade, mas desaprendeu em termos cívicos, não se tornou um lugar melhor para se viver, não evoluiu politicamente. Muitos serviços públicos essenciais deixam a desejar, tudo ficou extremamente difícil e custoso, o que era feio e ruim piorou, não houve acréscimos estéticos nem facilidades. A reação imediatista culpou os prefeitos, transferindo a solução para alguém que combata os problemas a partir de cima, sem titubear ou perder tempo com picuinhas políticas. Chalita quis situar-se além de PT e PSDB, Russomanno disse que não se candidatou para ser "líder político", mas prefeito.

Incapazes de captar os eixos desse processo, os políticos, em sua maioria, continuaram a seguir o mesmo roteiro de antes: horário eleitoral, marketing, foco gerencial-administrativo, obras e realizações. Poucos perceberam o esgotamento da fórmula. Os dois principais partidos, PT e PSDB, expuseram suas tensões a céu aberto. Fizeram isso por inércia (o costume) e por cálculo. Acharam que assim poderiam pautar os debates. Deixaram caminho aberto para Russomanno, que habilmente se manteve à margem de uma luta que se tornou derradeiro recurso para que um dos dois conflagrados possa chegar ao segundo turno.

Quinze dias é muito tempo em política. Não há como dizer que o quadro esteja definido. Mas os ventos da mudança já estão a soprar sobre as ruínas de um estilo de fazer política que perdeu sintonia com a vida e as expectativas das pessoas. No horizonte desponta um Estado meio que prisioneiro da fé e do mercado. O silêncio democrático dos cidadãos pode ser sentido, mas não parece ter forças para se fazer ouvir no curto prazo.

Mas não há um apocalipse à vista nem a cidade corre risco de vida.

Professor titular de Teoria Política e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

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