- O Estado de S. Paulo
Nestes dias de “crise dos partidos”, em que se anunciam fusões e criação de novas legendas, em que se fala de refundação ou de “volta às origens” de partidos que teriam perdido o rumo — época na qual parece se encerrar a mais promissora etapa de vida do partido político como instituição central da democracia política e tudo se mostra em processo de decomposição e recomposição –, pode ser interessante prestar atenção numa passagem dos Cadernos do cárcere de Antonio Gramsci. Nela, o marxista sardo se pergunta: “O que é a história de um partido? Será a mera narração da vida interna de uma organização política, de como ela nasce, dos primeiros grupos que a constituem, das polêmicas ideológicas através das quais se forma seu programa e sua concepção do mundo e da vida?”. [Cadernos do cárcere, ed. Civilização Brasileira, vol. 3, p. 87-8].
A pergunta instiga e funciona como ponto de partida para várias reflexões. Para Gramsci, se se seguisse o caminho sugerido pelos termos da pergunta, somente se conseguiria escrever a “história de grupos intelectuais restritos e, em alguns casos, a biografia política de uma individualidade singular”.
A moldura do quadro teria de ser mais ampla e abrangente, de modo a que se elabore “a história de uma determinada massa de homens que seguiu os iniciadores, sustentou-os com sua confiança, com sua lealdade, com sua disciplina, ou que os criticou realisticamente, dispersando-se ou permanecendo passiva diante de algumas iniciativas”.
Gramsci continua a se interrogar: “Mas será que esta massa é constituída apenas pelos adeptos do partido? Será suficiente acompanhar os congressos, as votações, etc., isto é, todo o conjunto de atividades e de modos de existência através dos quais uma massa de partido manifesta sua vontade?“.
A resposta a esta segunda questão é igualmente esclarecedora: “evidentemente, será necessário levar em conta o grupo social do qual o partido é expressão e a parte mais avançada: ou seja, a história de um partido não poderá deixar de ser a história de um determinado grupo social. Mas este grupo não é isolado; tem amigos, afins, adversários, inimigos. Somente do quadro global de todo o conjunto social e estatal (e, frequentemente, também com interferências internacionais) é que resultará a história de um determinado partido”. Donde a conclusão: “pode-se dizer que escrever a história de um partido significa nada mais do que escrever a história geral de um país a partir de um ponto de vista monográfico, pondo em destaque um seu aspecto característico.
Um partido terá maior ou menor significado e peso precisamente na medida em que sua atividade particular tiver maior ou menor peso na determinação da história de um país”.
A reflexão gramsciana nos ajuda a compreender do que é que estamos falando quando falamos de trajetórias partidárias. Militantes e historiadores escrevem distintas histórias de partidos, pois são movidos por distintas pulsões e distintos interesses, perspectivas e experiências particulares. No próprio texto da nota aqui reproduzida está a conclusão: “é a partir do modo de escrever a história de um partido que resulta o conceito que se tem sobre o que é um partido ou sobre o que ele deva ser. O sectário se exaltará com os pequenos fatos internos, que terão para ele um significado esotérico e o encherão de entusiasmo místico; o historiador, mesmo dando a cada coisa a importância que tem no quadro geral, acentuará sobretudo a eficiência real do partido, sua força determinante, positiva e negativa, sua capacidade de contribuir para a criação de um acontecimento e também para impedir que outros acontecimentos se verificassem”.
Em suma, militantes e dirigentes partidários valorizam fatos e personagens que não necessariamente serão reconhecidos por quem, fora dos partidos, se propõe a compreendê-los e criticá-los. A hagiografia dos primeiros precisa ser compensada com o ceticismo crítico e desencantado dos segundos. Um meio-termo faz-se, assim, indispensável e é justamente ele que mais falta faz num momento em que as estruturas partidárias estão em decomposição.
Partidos podem nascer e morrer conforme seus grupos e classes de referência nasçam e morram, ou simplesmente se transformem, alterando sua estrutura, seu modo de ser, sua concepção do mundo, e assim por diante. Sem levar isso em consideração, não dá para avançar em termos de compreensão, de tomada de posição e de eventuais ações práticas.
No horizonte, mas também no presente imediato, desponta forte a indagação sobre o futuro daquilo que se costuma chamar de “forma-partido”. Coisa que será objeto de outra postagem.
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Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política da Unesp
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