- O Estado de S. Paulo
Os tempos são de crise. Não apenas política e econômica, mas também argumentativa. Não raro o debate público é dominado pela polarização ideológica, na qual os argumentos, despidos de seu contexto e transformados em lugar-comum, servem apenas para atacar o suposto adversário.
Nesse ambiente de pouca reflexão e raso diálogo, o novo livro de Luiz Werneck Vianna, Ensaios sobre Política, Direito e Sociedade (Hucitec Editora, 2015), é um oásis. Reunião de textos escritos ao longo das últimas três décadas, a obra analisa com serenidade e profundidade, num contínuo diálogo com autores clássicos e contemporâneos, a realidade institucional e social brasileira.
Para Werneck Vianna, a sociedade brasileira está de tal modo configurada pelo Estado que a análise do fenômeno social passa necessariamente pelo estudo das relações entre o seu direito e a sua política. Daí brotará o eixo temático do livro – a judicialização da política. Consciente de que o fenômeno desafia as teorias clássicas republicanas centradas na regra da maioria e de que “na democracia não cabe um governo de juízes”, o autor adverte para a necessidade de compreender bem o protagonismo contemporâneo do Poder Judiciário. Não vê incompatibilidade entre o abandono da neutralidade judicial e a representação. No entanto, desvelar essa harmonia exigirá um novo pensar, com a ampliação do conceito de soberania popular e o reconhecimento de novos lugares de representação popular.
Nem todos os elementos do fenômeno da judicialização da política são novos, lembra o autor. Por exemplo, a legislação trabalhista dos anos 1930, num movimento de publicização da esfera privada. Ao proteger o economicamente vulnerável, introduz-se um elemento de justiça na política, com uma tendência de predominância do legislado sobre o negociado. Ocorre, assim, a judicialização do mercado de trabalho.
Semelhante movimento se fará notar na Constituição de 1988; agora, no entanto, com outra dinâmica na relação entre Estado e sociedade. A tutela autoritária será substituída por uma nova modalidade de interação. O constituinte buscará na judicialização da política uma forma de realizar as mudanças substantivas na e com a sociedade, convocando-a a participar da defesa e aperfeiçoamento do direito.
Em contraste ao ocorrido em 1891, 1934 e 1946, a Constituição de 1988 não é resultado de um processo político concluso, mas se insere na transição do autoritarismo para a democracia política. Tal circunstância impõe soluções de compromisso entre forças díspares. A estratégia será deslocar para o futuro a implementação da mudança social, por meio de uma ampla e compreensiva declaração dos direitos fundamentais. Ao enunciar programaticamente os direitos sociais, “o constituinte demanda a mediação da sociedade a fim de impedir (...) que as normas e garantias dispostas na Carta fossem interpretadas como de caráter simbólico”.
Luiz Werneck Vianna frisa que a judicialização da política não é fruto de um ativismo judicial, mas resultado da vontade expressa do legislador. Não há usurpação de poder, fato comprovado pela jurisprudência dos anos imediatamente seguintes a 1988, quando os magistrados se mostram um tanto reticentes com o novo papel que a Constituição lhes atribui. Aos céticos do caráter democrático dessa nova relação entre os três Poderes, o autor faz importante observação: “Não há registro de nenhum exemplo de judicialização em um contexto não democrático”.
A Constituição é, portanto, um continuar-descontinuando. Há o velho e há o novo. Com um diagnóstico cético do Brasil – “país socialmente desigual, sem história de auto-organização e carente de sedimentação das virtudes cívicas” –, o constituinte opta por preservar papéis fortes para a dimensão do público na regulação da vida social, ao mesmo tempo que, numa perspectiva comunitarista, redefine o papel democrático do Poder Judiciário. Apesar de não estar submetido ao controle dos eleitores, isto é, não originário da representação, o terceiro Poder exercerá representação dos princípios constitutivos do corpo político. “De poder isolado em sua autonomia institucional, o Judiciário passa a ser incorporado como novo ator na expressão da vontade soberana”, reconhece o autor.
Além de conter certo pessimismo com a representação parlamentar, essa nova perspectiva é também reflexo de uma descrença nas revoluções políticas como meio de mudança social. O futuro deixa de ser concebido em ruptura com o presente. É nas “sucessivas transformações moleculares” que agora se depositam as esperanças de uma transformação social. É a “revolução sem revolução”, mas já não como mero teatro para o triunfo das forças de conservação, e sim como o fiat da dialética como “tranquila teoria” de Gramsci.
Há um novo direito e, portanto, uma nova noção de Estado. Já não existem respostas prontas. Substituiu-se o direito do pretérito, com sua pretensa segurança, por um direito do futuro, ainda a ser concretizado, contaminado pelo provisório e configurado mais como rede do que como código. Um sistema aberto, mas nem por isso “alternativo” ou com menor juridicidade. Sua realização não é uma utopia, mas exige a participação da sociedade.
Esse movimento, no entanto, não é isento de riscos. O autor nota que, de uma inicial reticência, o Judiciário brasileiro parece ter abraçado com entusiasmo desmedido seu novo papel, com ingerências não de todo justificáveis na esfera dos outros Poderes. “Forçando as tintas, pode-se sustentar que o Brasil tornou-se (...) a capital mundial da judicialização da política”. É preciso compreender bem a democracia e a república. Tanto para reconhecer os méritos democráticos da nova arena pública em torno do Judiciário, quanto para advertir seus claros limites republicanos.
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* Nicolau da Rocha Cavalcanti é advogado e jornalista
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