- Eu &Fim de Semana | Valor Econômico
Ninguém ganha a disputa presidencial para governar Brasília. Lá estão o governo federal e os outros Poderes da República, cujas decisões são fundamentais para todos os brasileiros. O forte poder da União, contudo, não significa que o presidente possa ter sucesso sem levar em conta os problemas e as posições dos prefeitos e governadores. Quanto mais dificuldades e crises enfrentarem municípios e Estados, mais complicada será a governabilidade do país. De modo que a busca do equilíbrio federativo será uma tarefa central para o vencedor da eleição.
A federação brasileira passou por muitas mudanças e fases desde o restabelecimento da democracia. Num primeiro momento, por conta da combinação da crise do regime militar com a do Estado desenvolvimentista, a União perdeu forças e as forças descentralizadoras ganharam poderes e recursos inéditos na história. Só que a mesma Constituição que deu status de ente federativo a todos os municípios - algo sem igual entre os países federativos - e ampliou o poderio tributário dos Estados pela via do ICMS, também deu amplos poderes legislativos ao governo federal e manteve uma base financeira e burocrática ao Executivo nacional que o manteve como a principal peça do jogo político brasileiro.
Mas o alcance desse equilíbrio não foi imediato. O final do governo Sarney e o início dos anos 1990 foi uma época marcada por uma descentralização municipalista desorganizada de políticas públicas, pela irresponsabilidade fiscal dos Estados - que produziam dívidas e repassavam os custos disso à Brasília - e por uma grande turbulência política e financeira no Executivo federal. Foi com a aliança montada em torno de Fernando Henrique Cardoso, primeiro como ministro da Fazenda e depois como presidente eleito, que se iniciou a reversão desse cenário federativo. FHC conseguiu montar uma coalizão e uma agenda de reformas que foram capazes de se aproveitar das competências legislativas dadas à União pela Constituição de 1988
Dali em diante o governo federal se fortaleceu no jogo intergovernamental. Pode se ter a impressão que essa mudança foi fácil, mas houve muito conflito e incerteza no meio desse caminho. A crise da dívida dos Estados, por exemplo, foi uma negociação bastante tensa, cuja resolução envolveu a troca de privatizações de empresas estaduais por recursos do governo federal, seja com empréstimos do BNDES e da Caixa, seja com o refinanciamento dos débitos pelo Tesouro Nacional. Esse passivo tem sido pago pelos governadores que vieram a seguir, mas também por todos nós, pela via do crescimento da dívida pública. Nada disso é indolor, tanto política como financeiramente.
O fortalecimento da União também foi uma obra de desenhos institucionais e políticas de coordenação federativa construídas de forma bastante competente e criativa. É preciso louvar os que pensarem o então Fundef, na educação, e o PAB, na saúde. Essas soluções não eram óbvias e outras federações mais próximas do nosso modelo, como o México ou a Argentina, não foram ainda capazes de montar arranjos intergovernamentais para reduzir as desigualdades e coordenar melhor a descentralização do que o Brasil.
O período Lula continuou esse processo de ampliação do papel da União na articulação e indução da ação dos governos subnacionais. A experiência de vários quadros petistas em municípios os levou a entender a necessidade de ajudar os governos locais a ampliar as políticas públicas, sobretudo as de corte social. O exemplo do Bolsa Família é interessante para esse debate. Seu sucesso em relação aos objetivos pretendidos e à sua impressionante amplitude (número de famílias atendidas em tão curto espaço de tempo) é inegável. O desenho adotado combinou uma forte centralização na distribuição dos benefícios, que vão direto aos indivíduos sem a intermediação de líderes locais, com uma paulatina criação de capacidades institucionais nos governos subnacionais, especialmente nas prefeituras, pela via do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e do Índice de Gestão Descentralizada (IGD).
A trajetória recente das principais políticas sociais revela, mesmo com diferenças entre os setores, a principal equação do federalismo brasileiro: normatização e coordenação federal somada à execução subnacional. Neste cenário, Brasília tem um peso grande, mas não define o jogo. A implementação é a peça-chave e está nas mãos de Estados e municípios. Tome-se o exemplo da educação. O ensino fundamental está dividido entre governos municipais e estaduais, e o ensino médio ficou basicamente com os Estados. O plano federal pode fazer uma legislação estratégica como a da Base Nacional Comum Curricular, importante por si só, porém, que terá poucos resultados se a gestão subnacional fracassar. Aí não adianta fazer propaganda na TV: os eleitores vão achar que o presidente errou na política pública.
Houve muitos avanços nessa coordenação de ações federais e subnacionais nos períodos FHC e Lula. O crescimento econômico da década passada permitiu ainda uma certa recuperação das finanças estaduais. Também ocorreu uma elevação de gastos subnacionais nas principais políticas sociais, algo que foi sustentável até 2014. O federalismo estava mais equilibrado, com um comando nacional importante e com a expansão das iniciativas governamentais no plano local.
A crise federativa voltou com o governo Dilma. Do lado das políticas públicas, a centralização exacerbou-se, como mostra o modelo da construção de creches. Tal qual em outras arenas, Dilma criou poucos espaços de efetivo de diálogo e negociação entre os atores intergovernamentais, não levando em conta, no mais das vezes, as peculiaridades locais na definição do tipo de ação federal. Do lado financeiro, na ânsia de continuar o crescimento do país, a presidenta estimulou uma nova rodada de endividamento dos governos estaduais e não os induziu a fazer ajustes estruturais. O resultado é que começamos o novo quadriênio governamental, em 2015, com um processo de derrocada dos Estados, algo que se agravou com a forte e prolongada recessão.
Na verdade, no atual momento a crise financeira não é somente dos Estados, como ocorrera na segunda metade da década de 1990. Os municípios nunca estiveram numa situação tão frágil em termos fiscais como agora, o que se soma à deterioração do quadro no plano federal. Desse modo, os três níveis de governo estão mal das pernas. Por isso será mais difícil reconstruir o equilíbrio federativo em comparação às mudanças ocorridas no período FHC. Há grandes problemas econômico-financeiros, no campo das políticas públicas e na concepção de federalismo que terão de ser enfrentados.
A recuperação financeira da federação vai ter de passar por quatro âmbitos. Primeiro, o das reformas no plano das despesas próprias, com a questão previdenciária tendo aqui o maior destaque. Segundo, deve-se alterar o financiamento intergovernamental, aumentando a eficiência e a efetividade no repasse dos recursos entre os entes, com uma melhor definição dos critérios de desempenho e equidade que regulariam as transferências. Terceiro, é preciso atuar no campo da receita, tornando, ao mesmo tempo, a tributação mais justa e mais amigável às atividades econômicas. E, por fim, a reformulação da gestão pública, pois será necessário fazer mais e melhor com relativamente menos. O problema aqui é que, além dos problemas mais gerais da administração pública brasileira, como o engessamento da legislação e o predomínio do controle procedimental sobre a autonomia dos gestores, prevalece um cenário de baixa capacidade de governança e implementação na maior parte dos governos subnacionais.
As políticas públicas terão de ser mais cooperativas daqui para diante, o que implica melhorar os incentivos à atuação intergovernamental conjunta. Há muitos obstáculos aqui, que vão desde dificuldades institucionais para se montar formas de cooperação intermunicipal ou regional nos vários setores, até a ausência de fóruns de participação dos três entes federativos no processo deliberativo. Algumas áreas têm uma situação mais dramática, como é o caso da segurança pública, que se tornou uma verdadeira Torre de Babel, em que não se sabe como juntar os esforços dos governos para se obter melhores resultados.
Essas transformações passam por uma mudança na concepção política do federalismo brasileiro, em particular de nossas principais lideranças políticas. De um lado, Brasília não pode decidir tudo o que deverá ser feito em todo o país. Não é uma questão de preferência descentralizadora. É que esse modelo tem dado errado. Do outro lado, sabe-se que uma visão descentralizadora fragmentada só produzirá mais desigualdade territorial, pois a maioria dos governos locais irá trilhar o caminho do fracasso na implementação das políticas públicas.
O próximo presidente tem de saber que Brasília é a sede do poder, não o seu fim. Nessa linha, a famosa esfinge do poder lhe dirá: "Seu sucesso dependerá, fortemente, da melhoria dos serviços públicos, fornecidos basicamente pelos governos subnacionais. Esse objetivo só será possível com a adoção de medidas para reequilibrar a federação. Caso não faça isso, presidente, você será devorado".
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Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
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