sexta-feira, 11 de maio de 2018

Documento da CIA indica que Geisel autorizou execuções

Memorando da agência americana para Kissinger diz que assassinato de opositores era política de Estado

Documento de um ex-diretor da CIA para o então secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger, de 11 de abril de 1974, afirma que o então presidente Ernesto Geisel sabia da execução de 104 opositores da ditadura militar durante o governo Médici. O texto afirma que ele autorizou que as execuções continuassem, como política de Estado, com apoio do general João Figueiredo, então chefe do SNI, que o sucederia na Presidência, em 1979. O memorando foi encontrado pelo pesquisador Matias Spektor, da Fundação Getulio Vargas, que o classificou como “o documento mais perturbador” que leu em 20 anos de pesquisa. Em nota, o Exército informou que os documentos relativos ao período foram destruídos.

Execuções oficiais

Documento da CIA revela que Geisel autorizou assassinato de ‘subversivos perigosos’

Juliana Dal Piva, Daniel Salgado | O Globo

Um memorando feito pelo ex-diretor da CIA William Colby, em 11 de abril de 1974, e destinado ao então Secretário de Estado dos Estados Unidos, Henry Kissinger, descreveu como o ex-presidente Ernesto Geisel soube do assassinato de 104 opositores políticos e autorizou que as execuções dos presos continuassem como forma de política de Estado. O documento foi localizado ontem pelo pesquisador de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV) Matias Spektor. Para ele, o memorando é a evidência mais direta já encontrada do envolvimento dos ex-presidentes Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo com a política de assassinatos.

— Este é o documento secreto mais perturbador que já li em 20 anos de pesquisa — afirmou Matias Spektor.

No ofício, Colby descreve um encontro ocorrido em 30 de março de 1974, 15 dias após a posse de Geisel. Na ocasião, além do presidente, estavam presentes três generais que lideravam o combate armado aos opositores. Entre eles, Milton Tavares de Souza e Confúcio Danton de Paula Avelino, respectivamente os chefes de saída e chegada do Centro de Inteligência do Exército (CIE). No encontro, também estava o general João Baptista Figueiredo, chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI). Figueiredo sucedeu a Geisel em 1979.

EXÉRCITO: DOCUMENTOS FORAM DESTRUÍDOS
Segundo o memorando da CIA, o general Milton Tavares de Souza informou a Geisel, na reunião, a execução sumária de 104 pessoas feita pelo CIE durante o governo de seu antecessor, o presidente Emílio Garrastazu Médici. Em seguida, o chefe do CIE pediu autorização para que os militares continuassem a “política” de extermínio no novo governo.

Segundo Colby, o general Milton Tavares “enfatizou que o Brasil não poderia ignorar a ameaça subversiva e terrorista, e métodos extralegais deveriam continuar a ser empregados contra subversivos perigosos”. Mais adiante, completou: “A este respeito, o general Milton disse que cerca de 104 pessoas nesta categoria foram sumariamente executadas pela CIE durante pouco mais de um ano (1973), aproximadamente. Figueiredo apoiou essa política e insistiu em sua continuidade”.

Na reunião, Geisel pediu para pensar durante o fim de semana sobre a continuidade da “política”. O memorando da CIA informa que, em 1º de abril, o presidente disse ao general Figueiredo que a “política deveria continuar”. No entanto, Geisel orientou que “apenas subversivos perigosos fossem executados”. Ele e Figueiredo concordaram que todas as execuções deveriam ser então aprovadas pelo então chefe do SNI. “Quando a CIE prender uma pessoa que possa se enquadrar nessa categoria, o chefe da CIE consultará o general Figueiredo, cuja aprovação deve ser dada antes que a pessoa seja executada. O presidente e o general Figueiredo também concordaram que a CIE deve dedicar quase todo o seu esforço à subversão interna, e que o esforço geral da CIE será coordenado pelo General Figueiredo”, descreve o documento.

O Exército afirmou ontem em nota que os documentos não existem mais: “O Centro de Comunicação Social do Exército informa que os documentos sigilosos, relativos ao período em questão e que eventualmente pudessem comprovar a veracidade dos fatos narrados, foram destruídos, de acordo com as normas existentes à época — Regulamento da Salvaguarda de Assuntos Sigilosos (RSAS)”.

Segundo a rede do governo americano onde esses documentos estão sendo disponibilizados desde 2015, uma cópia do memorando vai ser entregue ao Secretário de Estado Adjunto para Assuntos Interamericanos. Atualmente, apenas a descrição do conteúdo do arquivo está disponível no site dos documentos históricos americanos. O original ainda está guardado na CIA. Na leitura, é possível reparar que o primeiro e o quinto parágrafos do memorando continuam secretos e não foram divulgados.

O CIE tinha alta influência na cúpula do regime, pois era uma estrutura do próprio gabinete Afinados. Geisel (à esquerda) determinou que execuções deveriam ser aprovadas pelo general João Figueiredo do ministro do Exército. Até a posse de Geisel, o cargo era ocupado por seu irmão, Orlando. Depois, foi nomeado o general Vicente de Paulo Dale Coutinho. Desde a criação pelo regime em 1967, o CIE tinha sede no Rio. Quando Geisel chegou ao Palácio do Planalto, em 1974, o escritório foi transferido para Brasília.

Antes do memorando da CIA, as únicas informações existentes de que os ex-presidentes militares sabiam e autorizaram execuções eram dois diálogos publicados pelo jornalista Elio Gaspari na coleção “Ditadura”, da editora Intrínseca. No terceiro volume, “A ditadura derrotada”, Gaspari registrou uma conversa entre Geisel e Dale Coutinho, em 14 de fevereiro de 1974.

Na ocasião, ambos afirmam que o Brasil só se tornou um “oásis” para investidores depois que os militares “começaram a matar”. Na conversa, Coutinho diz a Geisel: “Agora, melhorou, aqui entre nós, foi quando nós começamos a matar”. O presidente concorda: “Porque antigamente você prendia o sujeito e o sujeito ia lá para fora. [...] Ó Coutinho, esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser”.

Gaspari também relata outro diálogo ocorrido, em janeiro de 1974, entre o tenente-coronel Germano Pedrozo e o presidente Geisel. Eles falavam sobre um grupo de pessoas presas no Paraná e que vinham do Chile, passando pela Argentina. Geisel questiona Pedrozo: “E não liquidaram, não?”. Pedrozo então confirma as execuções: “Ah, já, há muito tempo. É o problema, não é? Tem elemento que não adianta deixar vivo, aprontando. Infelizmente, é o tipo da guerra suja em que, se não se lutar com as mesmas armas deles, se perde. Eles não têm o mínimo escrúpulo.” O presidente, depois, completa: “É, o que tem que fazer é que tem que nessa hora agir com muita inteligência, para não ficar vestígio nessa coisa”.

Entre 1972 e 1973, a Comissão Nacional da Verdade identificou 138 vítimas, 69 em cada ano. Esse número inclui tanto os mortos oficiais como os chamados desaparecidos políticos, que, depois do governo Geisel, chegaram a um total de 53 só em 1974. Ao todo, durante os 21 anos da ditadura as vítimas fatais chegaram a 434, sendo 208 desaparecidos.

Alguns episódios ficaram conhecidos pelo grau de crueldade usado contra os opositores. Em janeiro de 1973, no município de Paulista, em Pernambuco, ocorreu a “Chacina da Chácara de São Bento”. O caso levou à execução de seis integrantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). O grupo foi denunciado por José Anselmo dos Santos, conhecido como cabo Anselmo, que agia como agente duplo das Forças Armadas dentro da organização e deu informações até sobre sua então companheira Soledad Barret Viedma.

No período, muitas mortes também ocorreram durante a chamada Guerrilha do Araguaia. Entre 1972 e 1974, as Forças Armadas fizeram incursões no Pará para eliminar integrantes do PCdoB. Nessas operações, mais de 70 guerrilheiros desapareceram ou foram mortos após os confrontos com os agentes do Exército, que chegou a usar bombas de napalm contra os revolucionários.

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