sexta-feira, 11 de maio de 2018

José de Souza Martins: O desabamento

- Eu &Fim de Semana | Valor Econômico

O incêndio e o desabamento de um edifício de 24 andares no Largo do Paiçandu, em São Paulo, na madrugada do dia 1º de maio, contêm informações significativas sobre a problemática situação social do Brasil. As que ganham visibilidade e ganham sentido de modo mais intenso na perspectiva da tragédia. Na fachada do prédio, pichadores haviam escrito com números e letras imensos: 666, o número da besta-fera do Apocalipse, o código do poder oculto do maligno.

Desastres como esse são sempre reveladores do estado em que a sociedade se encontra. O que não sabíamos explode em nossa cara. A manipulação da opinião pública, a publicidade que cria falsos prestígios e enganosos êxitos de política social encontram nesses desastres o limite da mentira política forjada para encobrir a crua verdade dos problemas sociais. Quinze anos de um imaginário antipolítico de poder ruíram.

Aqui, tanto o discurso oficial quanto o discurso dito politicamente correto, são construções ideológicas, produzidas para fazer com que o real pareça aquilo que convém aos parasitas do poder. Ao fim de algum tempo, o regime de 2003 alardeou que já não havia pobres no Brasil. Era agora um país de classe média. Os brasileiros clandestinos dessa peneira ideológica sumiram na massa de moradores de rua e de invasores e ocupantes de dezenas de edifícios como o do Largo do Paiçandu.

Desde os anos 1970, difundiu-se entre nós a concepção de que a resistência ao Estado autoritário e sem legitimidade gerou uma legitimidade alternativa, antiditatorial e popular, ruidosamente expressa nos movimentos sociais. O Estado teria se tornado não mais do que usurpador de um direito de expressão e de um atributo próprio do povo, do qual todo direito emana. Cortado pela ditadura o elo de transmissão desse direito, a energia contida nas demandas e carências do povo foram canalizadas para os movimentos populares. Que se tornaram também e sobretudo poderes contrapostos ao que é próprio das instituições políticas.

Não só a ditadura foi neles e por eles situada e renegada. Mas também a democracia residual contida nessas instituições, que foram, aliás, o frágil elo de sustentação de nossa reação ao autoritarismo. Jogamos fora o bebê junto com a água de seu banho. Ignorantes passaram a ocupar o lugar de sábios, oportunistas usurparam as funções de especialistas, alunos passaram rasteiras nos professores. Com o novo sujeito político, em vez da modernização da gestão pública, o poder caiu nas mãos de amadores, que foram educados nas limitações da cultura e do autoritarismo populares.

A fragilidade política do país, porque dividido e privado de um projeto de nação, desprovido de uma estrutura partidária que lhe desse os meios de expressar-se de acordo com necessidades e possibilidades históricas reais, fortaleceram os movimentos sociais e lhes deram uma intensidade oposta ao que é propriamente político. O que deveria ter sido um inovador elo de expressão democrática das carências do povo, e um meio de libertar o país dos emperramentos crônicos da burocracia pública subjugada pelo oligarquismo retrógrado, transformou-se numa rede de capangas de extensa usurpação do direito de representação política dos cidadãos, especialmente dos mais desvalidos.

Muito dos problemas do Partido dos Trabalhadores e de seus governos vem do fato de que o partido acabou sendo encarado como "partido dos movimentos sociais". Não como um partido propriamente dito, porque esvaziado de suas finalidades próprias. Nesse sentido, um partido da coalizão dos poderes fragmentários disseminados pelos movimentos e pelas organizações populares, autônomos e avessos em relação ao poder do Estado. A ditadura se foi, e essa articulação de poderes populares dispersos permaneceu e se robusteceu, parasitando o governo. Um Estado paralelo e invisível governa o país. Gerou e animou a contraposta reação da direita corrupta e corruptora.

O desabamento do dia 1º de maio expôs esse Estado paralelo, as trágicas consequências de um poder desregulado, fora do marco legal, intimidador, instrumento de coação tanto do governo quanto dos pobres e frágeis que se tornaram dele dependentes. O prédio fora ocupado por mais de uma centena de famílias em nome de um dos vários movimentos pela moradia que atuam na cidade de São Paulo. Vítimas testemunharam que pagavam, a líderes do movimento, de R$ 200 a R$ 400 por mês por um cubículo de tapumes.

O desabamento mostrou que a ocupação era tanto um meio de vida de dirigentes quanto um meio de poder do movimento em nome do qual os dirigentes falam. O desabamento expôs as tripas do poder paralelo, a estrutura e as misérias do governo invisível e do poder popular.
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José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê Editorial).

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