- O Globo
A velhice foi reinventada pela cultura, praticamente negando-a
Quantos de nós, septuagenários, tivemos que ouvir “que idade não existe, que tudo depende da cabeça”? Quando éramos sessentões adentrados, explicávamos que não era tão assim, que o corpo estava ficando menos flexível, que esquecíamos cada vez mais nomes e coisas. Com o tempo, aprendemos a não responder, a aceitar com um sorriso conselhos de como desfrutar os muitos anos que temos pela frente, que tudo dependia de fazer muito exercício e de uma atitude positiva.
Não eram só conselhos bem-intencionados. A sociedade em seu conjunto participava da conspiração. Quando entrávamos numa loja, a jovem atendente nos recebia com um “tudo bem com você?”, a roupa que usávamos, tênis, calça jeans e camisa polo, era a mesma que vestiam nossos filhos, e na universidade meus alunos falavam comigo com o mesmo tom informal que o faziam com seus colegas. E quando alguém falecia, não importando o avançado da idade, a pergunta que se fazia era “morreu de quê? ”. Como se a passagem do tempo não levasse à morte.
E os filhos tampouco queriam aceitar que os pais estavam envelhecendo. Só quando de uma doença grave ou uma hospitalização inesperada, caía a ficha que os pais simplesmente estavam em outra faixa de idade, estavam velhos.
Não era um mundo ruim. Os benefícios eram muitos, inclusive porque um lado de nós nunca deixou de ser adolescente, sem mencionar os direitos outorgados pelo poder público, de pagar meia-entrada e filas dedicadas para a terceira idade. Os eventuais custos, como a expectativa frustrada de uma relação mais respeitosa ou a falta de reconhecimento de que falávamos do alto da sabedoria conquistada com a passagem dos anos, eram, até certo ponto, o fruto imaginário de uma idealização do passado. Afinal, a minha geração já não havia sido tão deferente aos conselhos de nossos pais.
A velhice foi assim reinventada pela cultura, praticamente negando-a. E eis que do além surge um ente microscópico que coloca tudo em questão. O tal de coronavírus, que alguns jocosamente, mas de forma nem tão equivocada, chamam de coroa-vírus, colocou a cultura de pernas para o ar. A idade passou a ser um critério central para dividir a sociedade entre uns e outros, entre os acima de 60 e os que têm menos.
Isolados pela quarentena, desapareceram os modos homogeneizadores de relacionamento, de vestir, de conversar, substituídos por notícias e estatísticas que falam constantemente da faixa “acima de 60”, que define aqueles que se encontram na zona de maior risco. O que a cultura diluiu, a natureza repôs.
Filhos que não tinham certeza da idade dos pais descobrem que eles estão em risco. E estão em risco pois são velhos. A preocupação constante com os cuidados que os pais estão tomando fez aparecer um sentimento filial, que certamente sempre esteve presente, mas diluído pelas preocupações cotidianas e por uma cultura em fuga constante das realidades fundamentais da vida.
Não que a sociedade contemporânea não respeite intencionalmente os velhos, perdão, “pessoas de certa idade”. Simplesmente faz de conta que a idade não é relevante, pelo menos até a decrepitude total. Na prática, sabemos que não é bem assim. A idade conta quando alguém vai procurar um emprego ou tem que resolver problemas no meio digital. Se for no banco, não pegue a senha para a fila especial para maiores de 60 anos. A fila normal andará muito mais rápido, já que que os clientes que ainda vão às agências são, em sua maioria, da geração pré-digital. Imagino que haveria poucas agências bancárias se não fosse por este público viciado nas relações face a face e com dificuldades de resolver tudo pela internet.
A quarentena criou um prato cheio para sociólogos e antropólogos. Pena que seja difícil, senão impossível, fazer trabalho de campo. Quando ela terminar, teremos estatísticas sobre o aumento da violência contra a mulher e os filhos e pedidos de divórcio (em Israel sempre aumentam depois dos feriados de Pessach e Rosh Hashana, e estamos falando de alguns poucos dias onde o casal tem que conviver 24 horas). Os lares de classe média, tendo que viver ao estilo do Primeiro Mundo, isto é, sem empregada doméstica, vivem uma experiência inédita. Difícil imaginar a situação nos lares mais pobres e as dificuldades de manter a distância social (termo infeliz que deveria ser substituído pelo de distância física) em casas e ruas sem espaço, para não falar das penúrias econômicas.
Podemos desde já imaginar que na próxima quarentena estaremos usando óculos 3D e luvas eletrônicas para “ir” ao supermercado. Acho menos provável que teremos máquinas lava-compras, considerando que ainda não foi inventado um simples instrumento que ajude a calçar meias, algo banal demais para um mundo que procura soluções na alta tecnologia.
Para finalizar, não posso de deixar de registrar que para os mais idosos a quarentena tem dimensões subjetivas mais sombrias. Se durar muitos meses ou um ano, para dar um número pessimista, mas que está na ordem do dia, para pessoas de certa idade significa perder não só uma porcentagem alta da vida que lhe resta, como também um período em que estará melhor do que no ano seguinte, porque estão na fase do declive. Para um jovem, o ano eventualmente perdido se dilui nos muitos anos que tem pela frente. E para um idoso o isolamento físico, de certa forma, é uma prévia da despedida final, de presenciar a saudade que os seres queridos já sentem, e que algum dia será definitiva.
*Bernardo Sorj é sociólogo
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