- Valor Econômico
Brasil deve lutar para que as evidências empíricas e científicas guiem as políticas públicas
Temos cada vez mais informações para fazer análises científicas. O novo petróleo, como dizem alguns, são os dados. Na área de estudos econômicos, o campo que mais cresce é o de análise de dados. Deveríamos abraçar a ideia do uso de dados para desenhar nossas políticas com responsabilidade, principalmente em um momento emergencial como a pandemia atual. Porém não parece ser a ideia de alguns governantes atualmente.
Donald Trump praticamente ignorou a pandemia até 15 de março. Em vários momentos, ele falou que o vírus iria desaparecer com o verão no Hemisfério Norte e até especulou sobre a injeção de água sanitária para prevenir o novo coronavírus. Isso gerou um aumento significativo de procuras e compras na internet por desinfetantes nos Estados Unidos. Recentemente, Trump sugeriu diminuir a testagem da covid-19 nos Estados Unidos, já que com mais testes há mais casos. Os Estados Unidos têm mais de 129 mil mortes por covid-19 e cerca de 389 mortes por um milhão de habitantes.
Na Alemanha, ao contrário, onde a pandemia chegou mais cedo, o governo agiu rapidamente para conter o contágio da covid-19, utilizando a ferramenta de testes e monitoramento, assim podendo proteger os mais vulneráveis. O país liderado por Angela Merkel tem 108 mortes por um milhão de habitantes. A recessão da economia parece bem menos severa na terra do universalista Goethe do que na do nacionalista Whitman.
Jair Bolsonaro, seguiu o obscurantismo trumpista. No lugar de comunicar com clareza sobre o problema a ser enfrentado e unir o país, fez o cálculo político para não ser culpado pela crise econômica que resultaria da pandemia, sem ou com lockdown, talvez com intensidades diferentes. Resolveu então criticar publicamente as medidas de distanciamento social implementadas pelos Estados e municípios.
Além de minimizar os efeitos da doença, Bolsonaro demitiu dois ministros da saúde durante a pandemia e fez demonstrações contra o distanciamento social. Não é por acaso que o Brasil tem hoje quase 60 mil mortes por covid-19 confirmadas e está no epicentro da pandemia. A economia brasileira encontra-se em recessão e sem perspectiva de recuperação no curto prazo.
Os apoiadores incondicionais do presidente argumentam que os números de mortes por covid-19 estão sobre-estimados. Alegam que os governadores e prefeitos da oposição, por questões políticas e com o objetivo de atingir a popularidade do Bolsonaro, inflam os números e colocam qualquer tipo de óbito como morte por covid-19.
O brasileiro Thomas Fujiwara, professor de economia da Universidade de Princeton, mostra que não é bem assim. Em vez de usar casos pontuais que são instrumentos de proliferação de falsas verdades nas redes sociais, Fujiwara utiliza dados de cartórios para 17 cidades brasileiras com mais de um milhão de habitantes e estima o número de mortes excessivas - o número de mortes acima da média usual - entre 25 de março e 27 de maio deste ano.
Em alguns casos, são notórias as subnotificações de mortes por covid-19. Em Manaus, Fujiwara mostra que o número de mortes acima da média usual para o período em análise foi de 3.106 mortes, enquanto os óbitos registrados de covid-19 na cidade foram de 1.272. Já para o município do Rio de Janeiro, há para o período o registro de 4.961 mortes além da média para outros anos, mas apenas 3.135 mortes por covid-19. Ou seja, mesmo para Estados e cidades geridas por políticos da oposição ao Bolsonaro, o número de mortes pela covid-19 indica ser subnotificado.
Esperamos que as evidências possam mudar crenças e falsas narrativas. Em livro recente, Joel Mokyr, um dos principais historiadores econômicos da atualidade, escreve sobre a importância de empreendedores culturais para o progresso da ciência e para a inovação tecnológica. Tais empreendedores são pessoas que conseguem influenciar outras e mudar o pensamento vigente. Não é tarefa trivial quando as crenças em certas ideias são fortes e interesses políticos e econômicos estão em jogo.
Charles Darwin é um bom exemplo de um empreendedor cultural. Com uma análise científica rigorosa para a época, Darwin estabeleceu a teoria da evolução das espécies, segundo a qual a diversidade biológica é consequência de um processo de seleção natural no qual os organismos vivos se adaptam às mudanças no seu ambiente.
Darwin mudou o pensamento vigente até então sobre a origem das espécies, que antes era baseado no criacionismo. A teoria de Darwin é hoje aceita pela quase totalidade dos biólogos, sendo inclusive corroborada por evidências baseadas em achados arqueológicos, testes de DNA e experimentos controlados. A teoria da evolução das espécies se tornou uma das ideias mais revolucionárias de todos os tempos.
Apesar das mais amplas evidências, segundo pesquisa de opinião do instituto Gallup de 2019, cerca de 40% dos americanos acreditam que Deus criou o homem na presente forma e assim negam categoricamente a teoria da evolução de Darwin.
Um empreendedor cultural atual é Raj Chetty, economista da universidade de Harvard e impressionante comunicador. Chetty, junto com colaboradores, criou o Opportunity Insights Economic Tracker, uma plataforma com estatísticas detalhadas de consumo, emprego e outras variáveis que medem a atividade econômica em tempo real e a nível de bairros nos Estados Unidos.
As ricas evidências produzidas pelo time de Chetty sugerem que a pandemia gerou uma contração forte no consumo das pessoas de renda mais elevada, principalmente de serviços que requerem contato pessoal. Isso levou a uma forte queda de receita em vários negócios, que tiveram que demitir parte de sua mão de obra ou entraram em falência.
Por outro lado, medidas de reabertura da economia em algumas cidades americanas tiveram pouco ou quase nenhum impacto nos gastos das famílias mais pobres e, assim, na lucratividade dos negócios que supriam produtos e serviços para esses mercados.
Parece que o medo do contágio da covid-19, e não as ordens dos governos determinando o fechamento da economia, foi o principal causador da recessão econômica atual. Estudos similares precisam ser feitos no Brasil. Devemos lutar para que as evidências empíricas e científicas guiem as políticas públicas, de forma que as missões sociais do Chetty e de outros economistas não sejam tão difíceis de compreensão como a de Charles Darwin.
*Tiago Cavalcanti é professor de Economia da Universidade de Cambridge e da FGV-SP.
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